10/12/2016

dezembro 10, 2016
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Nos dias atuais muito se parece querer dizer. Todos falam, falam muito, mas o que dizem? O risco de muito se falar é nada dizer. Perdidos na verborragia dizem o óbvio, o vulgar, e assim não dizem nada.

Isso ocorre também com a Literatura. A Literatura não está em apenas dizer, mas em como dizer, o texto precisa ir além da simples fala. No texto que envolve o leitor o mais importante não é o que se diz, mas como se diz. E é assim no novo livro de Pedro Maciel, A noite de um iluminado (2016), onde a narrativa e o enredo, como uma história a ser contata, parecem secundários.

Nessa longa noite que percorre todo o livro, o leitor pode não entender tudo o que é dito, mas se sentirá convidado a pensar sobre o lido. A maneira como as coisas são ditas eleva-se acima da compreensão do texto e envolve o leitor como faria uma poesia.

Já escrevi sobre outros livros de Pedro Maciel, Como deixei de ser Deus (2009),  Retornar com os pássaros (2010), Previsões de um cego (2011), e todos trazem personagens que vão além do convencional. O iluminado de agora vive sem a dimensão exata do tempo, além do agora.

O narrador é um sideral, um caçador de estrelas que as cataloga enquanto disserta, e cada capítulo do livro tem como título o nome de uma estrela, tais como “Estrela Sagittarius”, “Estrela Cadente”, “Estrela Circumpolar”, “Estrela da Manhã”, “Estrela da Tarde” etc.

Mas o caçador também pode ser um lunático a tecer comentários sobre o tempo, a morte, o espaço infinito, a ausência, os personagens (ele também é escritor), enfim, alguém que apenas divaga. Talvez seja nosso alter ego a nos apontar questões da vida. Não importa, seja quem for, o escutamos, ou lemos, com atenção.

Devido a sua localização no espaço, seu movimento entre os astros e o tempo, desde os primeiros momentos do livro, o personagem me lembrou de Qfwfq, personagem de Ítalo Calvino em As cosmicômicas (1965), livro já comentado por mim em “A cômica história do universo”.

Sobre o tema, o narrador iluminado parece perseguido por seus antepassados e seus personagens. A morte está a um passo, uma vez que vive sua última noite. Ao amanhecer morrerá, e nesse ínterim, como já parcialmente mencionado anteriormente, discursa sobre o passado, o tempo, para onde vai, o que haverá do outro lado, se haverá outra vida após esta, bem como sobre a morte e a presença em si dos seus antepassados. E é nesse quesito que o texto acontece, nas elucubrações¹ do personagem, não no enredo ou na ação do texto que, verdadeiramente, não há.

Muitas são as perguntas feitas pelo narrador e por nós, enquanto ele aguarda a morte. Entre elas: Quanto tempo temos e quanto tempo percorremos até chegarmos aonde chegamos? Como medimos esse tempo? Onde estivemos antes de aqui? Que espaço ocupamos? Quem veio antes de nós, hoje nos acompanha de alguma forma, está em nós, vive em nós? O que foi feito dos nossos mortos, morreram por completo? Qual nosso nível de coerência do discurso? – isso por que nem sempre é coerente o discurso do caçador de estrelas.

Um dos pontos que mais me chama atenção no texto é o tempo. O tempo está em praticamente todo o discurso. Mesmo quando trata do espaço ocupado, é no tempo que ele está, quando trata do passado, do futuro, dos mortos ou mesmo dos personagens tudo parece envolvido no tempo, por onde tudo desfila. Por isso é sobre o tempo que vou me deter.

Vamos ver alguns desses momentos contidos em pequenas frases ou observações que se abrem a dissertações sobre vários aspectos da vida como em: “Eles [os antepassados] querem viver a eternidade através da minha vida. Será que estou vivenciando o primeiro dia da eternidade? Há séculos habito um tempo e não um espaço.” (p. 10).

Aqui temos a tese de que outros vivem em nós, bem como de sermos seu espelho para o mundo atual. Escrevi sobre isso no meu ensaio, As muitas faces da morte na poesia de Ferreira Gullar (2012), acerca da morte na poesia do poeta. Trata-se de nossos antepassados estarem em nós, vivendo através de nós como se nos usassem na forma de receptáculos, suporte para suas vidas, para continuarem existindo, seja literalmente seja em nossas mentes, lembranças e gestos que praticamos, supostamente, herdados deles.

Mas há outro fato interessante nessa afirmação. O fato de antepassados viverem no narrador, corrobora com a questão do tempo, de atravessar o tempo. Viver noutro após a morte prolonga a vida, alcança uma espécie de eternidade.

Diante disso, quando fala dos antepassados, fala do tempo antigo que poderia ter ficado para trás, mas que não ficou, pois esses antepassados parecem assombrá-lo hoje, portanto, estão aqui.

Quanto à última frase, sobre habitar o tempo e não o espaço, ela aponta para a ausência de espaço, pois no tempo, pelo menos no caso do personagem, ele ocupa todos os lugares e nenhum, ele não tem estância, ele apenas é. E essa ausência de espaço converte-lhe em ser atemporal. 

Contudo, ele percorreu o tempo, e ainda o percorre, enquanto vivo; assim como os astros ao seu redor que bem poderiam ser metáforas da existência: “Pode-se ler no rastro de uma estrela toda a história de uma vida.” (p. 12). Eis o tempo percorrido. O rastro descreve o tempo que correu, assim como a história é o ocorrido no passar do tempo – história é tempo decorrido.

Outro modo do tempo está em “Um dia meus antepassados vão chegar ao tempo prometido pelas estrelas que renasceram do outro lado do Universo.” (p. 13), onde “Um dia” é tempo futuro, algo ainda a se realizar, bem como “tempo prometido”, uma vez que as promessas devem se cumprir num tempo que ainda não veio, mas que se espera alcançar.

Adiante o narrador precisa falar do passado, e talvez do presente, a outro para provar sua existência: “Ontem de manhã fui a uma repartição pública provar que eu não havia morrido. Perdi o dia inteiro falando da minha vida, mas, mesmo assim, nem todos os funcionários se convenceram da minha existência.” (p. 13). Temos dois momentos no tempo aqui: a perda de tempo e a questão da ausência, uma ausência que acaba se ligando ao tempo, pois “estar” ocupa tempo no espaço, assim como “não estar” – no texto, estar morto – é ausência, não pertencer ao tempo de agora, estar além do tempo ou não estar em tempo algum.

Mais à frente, quando ele diz “Penso que estou lá onde é quando, mas estou é quando nem é onde. Onde estou ou deveria estar?” (p. 15), há nesse momento uma questão de presença/ausência, por estar “quando nem é onde”, e de tempo, em “quando”. O “quando” como um momento que revela um lugar vazio (“nem é onde”) e atemporal como ele mesmo completa a seguir, “Há dias habito um espaço sem tempo.” (p. 15).

Ainda quanto ao tempo e o espaço, o narrador diz “A partir de amanhã, vou habitar um tempo e não mais um espaço.” (p. 136). A diferença entre tempo e espaço ocupado. No tempo ele se torna memória, mas o espaço, com sua morte, torna-se vazio. O morto não está em nenhum espaço, mas está no tempo.

O tempo também pode ser fugidio, “Eu sou a noite e suas estrelas que caem num piscar de tempo.” (p. 18). Ao dizer num piscar de tempo, o tempo aqui é mais do que uma fração de segundos, um piscar de olhos; “num piscar de tempo” é um determinado tempo como um todo, é o piscar do tempo, não um intervalo entre o tempo, como se o piscar, a queda das estrelas, acontecessem num tempo completo, ou seja, cada queda de uma estrela é um tempo finito e completo que se esgota no instante em que cai.

Mas há momentos em que o tempo surge em suas três possibilidades mais conhecidas, passado, presente e futuro: “Não entendo a vontade dos meus antepassados em viver por toda a eternidade, se eles nunca sonharam com o futuro. Enquanto eu sonhava, a vida esvaiu-se pelo vão dos meus entretempos.” (p. 19).

O passado está nos seus antepassados que desejam hoje continuar a viver eternamente, condição de tempo perene que compreende o ontem, o hoje e o futuro. Porém, o narrador arremata, numa das suas constantes digressões, falando do tempo que se foi, através de palavras como “esvaiu-se” e “entretempos”. Ambas, nesse momento, trazem o passado, tempo decorrido, enquanto “pelo vão” dá a entender que há um espaço vazio entre os tempos, portanto, finitude entre eles, tempo ausente.

Mas o tempo também pode ser ficção: “Sou o tempo imaginário dos meus diários.” (p. 19). Esse tempo é invenção, encontrado noutra dimensão, noutra realidade, contudo irreal, onde o narrador está ausente do tempo de agora.

Ainda sobre o tempo imaginado, temos: “Sonhei os dias anteriores ao tempo, esse espaço imaginário da memória.” (p. 21), onde o tempo é passado, por estar na memória, e é imaginário outra vez, nesse caso, por ser considerado parte da memória, e a memória pode ser uma invenção como o narrador diz em vários momentos do livro, dentre eles: “Não me resta muito tempo para inventar as minhas memórias.” (p. 17, grifo meu) e “Amanhã, caso consiga atravessar essa noite, vou imaginar os dias de ontem que não foram vividos.” (p. 21, grifo meu).

Continuando no tempo imaginado, há outra passagem que diz “O meu tempo é um simulacro das realidades de outros tempos” (p. 21). Simulacro, entre seus significados, pode ser o ato de se simular efetuar uma ação que tencionamos não pratica. O simulacro do texto seria, portanto, um tempo falso de realidades passadas. Outras definições para simulacro seriam “Fantasma”, “Espectro” ou “Sombra”, onde todas nos serviriam como representação não palpável, imaterial ou irreal de outro tempo no presente, como uma ficção que espelha o já ocorrido alhures.

Também no tempo imaginado, o narrador fala do sonho como outra forma de inventar tempos, além de levar a outro tempo que não o real. Diz a passagem: “Às vezes tenho a sensação de que os sonhos me levam além do meu tempo, ao invés de revelar as minhas realidades. [...]. Todos os sonhos são imaginários, uma espécie de ruptura do tempo real. Não estaria enganando a si mesmo o sonhador?” (p. 28). O tempo como outra dimensão.

Outra forma que assume o tempo é a do não-tempo, aquilo que não pode ser indicado pelo verbal: “Espero não perder tempo aqui, parado, esperando a eternidade.” (p. 22). O não-tempo aqui é a eternidade, onde, contrário à ideia de perder tempo do início da frase, não se perde nada; algo não verbalizável no qual a eternidade é o tempo que não se esgota. Por outro lado, o perder tempo da frase é também o esperar por algo, a eternidade, que pode não vir.

Por outro lado, a eternidade também pode ser a morte, se levarmos em conta o que vem com ela e após ela, um momento ou situação imutável.

Sobre possíveis aspectos da eternidade, há no texto uma forma de imortalidade, a que se dá por intermédio da arte, através dos personagens: “Acho que inventei os meus personagens para renascer em outro tempo.” (p. 40), diz o narrador. A arte que fica após nossa morte nos dá a possibilidade de existirmos além de nós mesmos, é como se vivêssemos entre mundos, no tempo dos mortos, mas presente na leitura dos vivos.

A eternidade também está em “Preciso me esquecer da eternidade para rever o tempo presente” (p. 23). Ao lermos “rever” pensamos no passado, afinal só se rever o que já passou. Contudo, o narrador quer rever o presente. Para isso ele precisa estar no futuro, tornando o presente seu passado; o que faz da máxima “um homem à frende de seu tempo” bastante pertinente ao narrador.

Contudo, nas elucubrações desse narrador sideral há também o tempo finito: “Estou desanoitecendo diariamente.” (p. 77). Desanoitecer é amanhecer, mas também morrer, como uma estrela que só aparece à noite; se a noite se acaba, ela também. E como o narrador morrerá ao findar a noite, segundo ele já declarou, o nascer do dia é seu morrer. E corroborando essa ideia continua: “Nada mais vai me fazer amanhecer”. O amanhecer agora seria acordar, renascer, que o “nada mais” deixa claro que não ocorrerá.

Assim “desanoitecer” é o tempo que se esgota sem a possibilidade de outro tempo, contradizendo distantes afirmações no texto de uma vida pós-morte, bem como o próprio neologismo “desanoitecer” em passagens como “Todo dia anoiteço um pouco mais.” (p. 86, grifo meu), onde “anoitecer” parece ter o mesmo significado de “desanoitecer”, aproximar-se da morte; uma oscilação, transmigração de significados entre palavras diferentes que é uma constante em A noite de um iluminado.

Mas não paramos aqui sobre o finito, ele também está no eterno enquanto dure. Não falo do amor no poema de Vinícius de Moraes, falo da eternidade da vida: “Amanhã, após uma breve eternidade, vou deixar de existir.” (p. 112), diz o catalogar de estrelas. A breve eternidade é a vida que viveu eterna dentro do tempo que lhe coube, dentro de sua possibilidade, passageira. E os contrários, “breve” e “eternidade”, juntos dão maior força à passagem, porquanto que é eterno não seria breve nem o breve seria eterno, a não ser enquanto dure.

Sobre esse tema, Schopenhauer sentencia: “tudo dura só um momento e corre para a morte. A planta e o inseto morrem no fim do verão e o animal e o homem, depois de alguns anos: a morte ceifa incansavelmente” (2004, p. 86).

Seguindo em frente, encontramos outras formas assumidas pelo tempo: a contemporaneidade e, outra vez, a ausência – ausência de si no tempo de hoje, consequência de viver, psicologicamente, no passado: “Não sei o que mais fazer para me aproximar do meu tempo. Os homens do meu tempo vivem do passado, enquanto eu já transcorro outro tempo.” (p. 23).

No início o narrador se diz ausente do seu próprio tempo, portanto, não se vê contemporâneo dele, tema já debatido pelo filósofo italiano Giogio Agamben em seu livro O que é o contemporâneo (2009), onde afirma que o homem precisa afastar-se de seu tempo para que o perceba em toda a sua plenitude. Aquele que vive seu próprio tempo, completamente imerso nele, não o percebe com clareza, é preciso um distanciamento para isso. E não é difícil concordarmos, se levarmos em conta que constantemente enxergamos melhor um ocorrido com o passar do tempo do que enquanto o vivemos.

Dentro desse raciocínio, o fato do narrador não estar no seu tempo pode ser o que lhe faz ter mais discernimento para comentar e compreender, ou simplesmente, analisar o que vive e como foi sua vida. Por outro lado, o “meu tempo” também pode ser o tempo aonde ele quer chegar, seu destino ao findar dessa última noite.

Já quanto à ausência, sobre a qual também me referi acima, ela se encontra na afirmação de que os homens do seu tempo vivem do passado. Seus corpos podem estar no hoje, mas não estão no agora. Estão ausentes. Por sua vez, isso nos leva a questionamentos sobre como vivemos, que tempo realmente ocupamos e se somos do tipo que se deixa levar pelo passado, que vive de saudosismo ou de memórias, negligenciando o hoje. E se assim somos, se o passado é o que nos move, movemo-nos para trás.

Entre esses questionamentos sobre o presente, o passado e o futuro, outra característica do tempo se faz presente, o tempo como transição – entre realidades: “A vida é apenas uma transição entre este tempo e outros.” (p. 27). A vida como intervalo ao pós-morte, ou simplesmente entre mundos que seria o agora e outros tempos (no plural porque o narrador diz “outros”, não “outro”): morte, dimensões, realidades outras, enfim, mundos que não este. O que, por conseguinte, declara que nossa vida é efêmera.

Esse tempo como transição de um mundo para outro também se vê em: “Agora eu só penso em atravessar esta eterna noite e amanhecer do outro lado do tempo.” (p. 62). Nesse trecho, amanhecer significa acordar, despertar, o que só acontece com quem está vivo de alguma forma, e acordar é noutra vida, após esta.

Assim, se o narrador diz amanhecer, diz acordar, renascer. Portanto, a morte vem como uma representação do tempo que transmigra sem morte real ou total. Além disso, assim como a vida que pode ser apenas uma passagem, uma ponte entre os mundos, a morte também se faz ponte. A morte não é fim, é apenas dormir e permitir acordar do outro lado.

Não distante da forma de transição, há o tempo fluido, etéreo ou líquido, para usar um termo de Zygmunt Bauman: “Desde menino sei que sou uma nuvem, quero dizer, um tempo passageiro” (p. 72). Isso ainda corrobora com a ideia de vida como passagem, bem como de vida frágil, característica das nuvens.

Diante dessa constante presença da morte no discurso do narrador e suas conclusões sobre a vida que viveu ou vive, lembro-me de Martin Heidegger em Ser e tempo (1927) ao afirmar que a partir do momento em que o homem é tocado pela angústia ele faz uma recapitulação de todo o seu existir, tomando consciência de que é temporal, de que a morte é uma limitação, significando que o poder-ser possui uma possibilidade de não-ser. Talvez assim sinta-se o narrador.

Ainda sobre o tempo em forma de morte, há uma definição bastante perspicaz do catalogador de estrelas: “A morte deve ser o início do infinito se expandindo no meio de uma longa noite.” (p. 88). Extremamente poético!

Se aceitarmos a morte como o fim, como um caminho sem volta, uma escuridão, ela será o tempo infinito. Não haverá dia, não mais a luz, somente a noite interminável que muito já se assemelha ao estado do narrador enquanto nos fala – nesse momento ele vive uma longa noite (preparação para a morte ou já a morte propriamente dita?). E talvez já tomado pela força da escuridão, ele que se diz luz, em alguns momentos duvida de estar vivo: “Será que morri antes dessa noite?” (p. 34).

Por fim, outra questão que vale ressaltar é o tempo cíclico. O narrador chega a dizer em dado momento, “Para mim, o tempo não é cíclico. Portanto, não terei mais que reviver a minha tragédia” (p. 39). Contudo, na sua profusa dissertação, o retorno a ditos passados é constante, repetindo afirmações e frases já lançadas anteriormente como se revivesse conceitos prévios ou como um louco que se repete sempre com a altivez de quem diz aquilo tudo pela primeira vez. Seria isso o tempo na forma do Eterno Retorno² de Nietzsche, em sua A gaia ciência (1882)?

O que posso dizer é que entre essas tantas formas retratadas do tempo, esses tantos caminhos, não é de se estranhar que em certo momento o narrador afirme: “Eu sou de muito antes do tempo.” (p. 32). Declarando uma eternidade que atravessa a temporalidade.

Sobre a forma da obra de Pedro Maciel, é difícil enquadrá-la num gênero. Para facilitar a organização acadêmica e técnica costuma-se chamar seus livros de romances; contudo, essa descrição não se encaixa perfeitamente, pois nem seus livros passados nem esse em questão têm as características tradicionais do gênero. Também não serão poesia ou crônica. Então o que serão? Literatura!

Podemos dizer sobre A noite de um iluminado é que é um texto em prosa com poesia; e livre! Narrado como o sonho alucinado de um louco sideral que verbaliza a sua loucura sem se preocupar com gêneros ou fronteiras, muito menos com o tempo e a linearidade rígida de uma narrativa tradicional; mas um louco de clarificantes momentos de sobriedade e filosofia; um louco narrador tão louco quanto todos nós, quando nos permitimos experimentar; tão sóbrio quanto todos nós, quando nos permitimos pensar e nos elevar acima do tempo e do espaço.




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¹A palavra Elucubrações cai bem aqui, uma vez que esse verbo, além de significar trabalhos intelectuais, conjecturas e especulações, também pode significar trabalhar de noite ou passar as noites estudando. O que se assemelha ao momento do personagem que vive e disserta sobre a vida na sua última noite.

² De A gaia ciência de Nietzsche: “E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’ Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (aforismo 56).




REFERÊNCIAS:

AGAMBEN, Giogio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesku (2009). Chapeco: Argos, 2009.

CALVINO, Italo. As cosmicômicas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (1965).

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2009 (1927).

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (1882).

MACIEL, Pedro. A noite de um iluminado. São Paulo: Iluminuras, 2016.



SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, Metafísica da morte. Trad. Jair Barbosa. 2. ed. São Paulo: Martins Editora. 2004.

4 comentários :

  1. Valeu, caro William pela perfeição do seu texto, ensinando-nos a ler a obra do Maciel. Abraços.

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    1. Obrigado, Pedro!
      Agradeço também a leitura.
      Grande abraço!

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  2. Obrigado Willim Lial! Seu comentário sobre "A Noite De Um Iluminado" foi como a luz de uma estrela para eu poder percorrer e entender um pouco a noite de um iluminado.

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    1. Obrigado a você, Tereza, pela leitura e pelas palavras.

      Abraço!

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