09/06/2016

junho 09, 2016
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Como se vive nas sombras, à margem de um mundo movimentado e iluminado, para o bem ou para o mal, invisível sob um clima viciado de opressão e escuridão por todos os lados? Assim vivem os personagens de Rogério Pereira¹, no seu livro Na escuridão, amanhã (2013).

A história gira em torno de uma família humilde e comum do interior de alguma cidade do sul do Brasil que se muda para a capital. Até aí, nada demais, esse êxodo não é novidade em nenhum lugar. Mas o que parecia escondido, domado no interior de cada um, sobretudo no do chefe da família, talvez intimidado pela pequenez do interior com olhos mais próximos e atentos, encontra liberdade na cidade grande.

Na capital, vasta, movimentada e perigosa, diferente da tranquilidade morosa do interior, a escuridão que habita a família ganha força: “C. era a nossa penitência, nosso milho sob os joelhos, nosso rosário de ave-marias inventado pelo pai” (p. 51), relembra o narrador.

A partir dessa chegada à capital tudo muda para essa família, ou simplesmente aflora o que já existia nas suas sombras pessoais, enquanto vivem os descaminhos da nova cidade, enquanto parecem pequenos diante de tudo ao seu redor. Condição que se revela em vários momentos do livro, como em: “Era um pernilongo a pilotar um helicóptero” (p. 50), auto-observação do narrador em fuga sobre uma bicicleta, e “Ganhamos uma cidade e a sensação de que ela nunca acaba” (p. 11), dito pelo filho que partiu, referindo-se a mudança da família para a capital.

O pernilongo guiando um helicóptero descreve bem essa sensação de pequenez. Ambos voam, mas um é leve, a ser levado facilmente por qualquer coisa, enquanto o outro é pesado e de controle que exige experiência; um é pequeno e quase invisível na dimensão de uma cidade, o outro é grande e tornaria insignificante aquele em seu interior. O que por sua vez se assemelha à metáfora de proporção do infinito, a cidade que “nunca acaba”.

Quanto ao comportamento desses irmãos, sobretudo do pai, percebemos que, depois de chegarem à capital, o desnorteio os domina. Lá parecem perder a referência moral e o controle da sua bestialidade, fazendo com que tudo passe a ser permitido. “Mas por que este lugar, longe de tudo?”, pergunta em carta ao pai o filho que foi embora. E continua, “Fomos nos despedaçando. [...]. Sabíamos, desde o início, que a vastidão desta cidade consumiria nossas poucas forças, engoliria nossa pequenez, nos esmagaria. [...]. Tudo para apaziguar a tua sanha, o teu desejo, o vulcão das tuas vontades. [...]. Que demônio o habitava?” (p. 58).

Nas soma das palavras “sanha”, “desejo”, “vulcão”, “vontade” e “demônio” a representação da animalidade desgovernada, arremata com a alegação de uma possessão demoníaca; não claro, a de uma entidade profana, mas a de uma bestialidade humana, viril, dominadora e dominada, violenta que impregnava a essência do pai.

Entre os ultrajados, de alguma forma, pelo chefe da família, estava a esposa que nas noites era violada por ele com brutalidade, e a filha, a quem mata, quando ainda criança, enquanto um dos filhos assiste ao assassinato por entre frestas da parede; o mesmo filho que um dia vai embora para a guerra, preferindo esse destino a ficar na casa onde o pai é assassino, a mãe é vencida pela covardia e o mundo é pérfido e sujo. Ainda que, nem mesmo ele, filho e vítima, seja de todo isento de culpa.

Este pai, sempre descrito com palavras duras, “Um herói esculpido à força no bronze pútrido da discórdia” (p. 57-8), segundo o filho, autor das cartas, este pai liberou sua violência na nova cidade, entregou-se à ira e às suas vontades mais sórdidas. Mas não só ele deixou sua sanha aflorar, seus filhos também se perderam, como no desejo incestuoso do missivista pela própria irmã.

Este deixa-nos entrever, numa de suas cartas, esse sentimento que não consumia somente o seu pai. Nas suas palavras é possível sentir um ar de justificativa da ação do pai contra a filha, supostamente seduzido pelos encantos maliciosos da menina: “Por que o corpo da irmã – e que corpo bonito ela arrastava pela casa – desistiu da vida? Pequena feiticeira a nos besuntar o olhar com sua lascívia. Desde pequenininha, insinuante. Uma víbora à solta” (p. 97).

Na sua alegação, ele não vê um corpo de criança quando olha para sua irmã, não tem esse pudor, essa sobriedade e puerilidade. O corpo é bonito, o corpo que “ela arrastava pela casa”, pesando nesse “arrastar” a sensualidade de um corpo feminino de mulher que se insinua, o corpo de uma “feiticeira”, como diz. Era uma menina mulher lasciva que os besuntava o olhar. E nesse “besuntar” que tanto unta um corpo com algo quanto o torna sujo e o emporcalha, para usar uma das descrições do dicionário Houaiss, nesse “besuntar” somado à lascívia, declara-se toda a luxúria do olhar e do desejo libidinoso e sensual que não deveria ser suscitado em um homem normal por uma criança. Enfim, a menina é praticamente apontada como culpada e desejosa da morte (“desistiu da vida”), má e manipuladora com uma “víbora”.

O irmão, o narrador, também não foge aos instintos animais, nem a se reconhecer com eles, como se vê na descrição que faz de uma tentativa sua de ato sexual, sem consentimento da moça, quando se compara a um touro brabo: “O touro regressa babando, escavando o solo com as patas bifurcadas” (p. 75).

Falando um pouco mais sobre as cartas do irmão mais velho, endereçadas ao pai, a elas podemos chamar de kafkianas, tal seu teor de desagravo, de ajuste de contas, de dor e sofrimento, relatando o passado, cobrando o pai, que nunca as lê, a sua culpa no mundo que geriu; assemelhando-se assim, até certo ponto, às cartas que Kafka escreveu ao seu próprio pai, expostas no livro Carta ao pai (1953). E como curiosidade e exemplo do teor de cobraça dessas cartas, das dezessete enviadas, doze terminam com uma pergunta, como nos casos a seguir: “[...] Sinto a tua fúria a me estraçalhar inteiro. Por quê, pai?” (p. 15), e

O que seria de nós se ficássemos lá, pai [na cidade natal]? Eu não estaria aqui na loucura diária da morte. Disso tenho certeza. Mas era impossível. Aquela jaula era pequena demais para os teus passos de besta faminta. Era preciso fugir, escapar para C., onde é possível passar invisível. Lá, você seria descoberto, não é mesmo? (p. 25).

Além de exemplo de acerto de contas e cobrança, a última citação acima, apresenta mais uma demonstração do afloramento da loucura bestial do pai, “besta faminta”, e do poder perder-se na invisibilidade que concedem as grandes cidades, “onde é possível passar invisível”, para o mal que se desenvolve no interior das casas e nas sombras mais recônditas do ser humano.

As cartas também apontam a dúvida sobre um Deus que os teria abandonado à sorte: “Como acreditar, como crer no Deus da mãe? No Deus misericordioso, se Ele nos mandou o demônio [o pai] para cuidar do seu rebanho?” (p. 15) e “Será possível sobreviver à ausência de Deus?” (p. 19).

Voltando à cidade grande, o que se vê ali é o vazio da ausência. Ausência do outro, sobretudo dos próprios familiares, como percebemos no decorrer do livro, na forma de certa distância entre eles, desarmônicos, presos em seus mundos particulares, com raras exceções para os momentos juntos dos dois irmãos; contudo, nunca compartilhando tudo, como se percebe no caso do assassinato da irmã, quando aquele que vê não compartilha o que viu com o outro. Enfim, há a ausência do próximo, familiar ou amigo, do humano, o que leva à crença na ausência do divino, mesmo que este seja constantemente invocado pela mãe, o que, por sua vez, pode acentuar ainda mais a crença nessa ausência, uma vez que Deus parece estar apenas na oração vazia dessa senhora sofrida que não é capaz de livrar nem a si mesma, dominada e acovardada frente à sanha do marido.

Contudo, enquanto a vida segue turva, para a mãe, a religiosidade torna-se escudo e cortina que ela usa para não ver ou fingir não ver o mal na sua casa; ao passo que parte da grande força nefasta que subjulga a família é o sexo, presente em todo o romance, em quase todos os cantos e motivo de várias violências, tristezas e decepções. O sexo não é prazer, é dor e sombra, trevas e blecaute, temor e noite; trazendo consigo a escuridão, hoje e no amanhã, como sugere o título do livro, eternamente presente naqueles que sobreviveram.

Essa escuridão se faz como uma ausência de sol, de vida e de frescor num mundo sufocante, sem perspectivas saudáveis para o futuro, para o amanhã. Um amanhã que se mostra de dor, assim como o resto, exposto na forma de lembranças como que para esquecer, livrar-se de tudo, nas narrativas de dois irmãos – praticamente sem diálogos, feito relato vindo do longe da memória de sobreviventes, mas com alguma poesia, mesmo que sombria, sobrepondo-se à negrura da dor, até o fim, quando o pai morre pelas mãos do filho mais novo, o narrador, e todo o ar viciado de opressão se torna calcado.

As cartas do irmão que partiu e a narrativa do irmão que ficou são a espinha dorsal do livro. É através delas que tomamos conhecimento do que ocorreu com essa família e da personalidade do pai, figura central das cartas do filho que se retirou para a guerra. Outra guerra, de onde a fúria vem das armas de metal e não do bronze opressor e violento do pai.

Pesados, expectadores onipresentes e oniscientes de um mundo que não desejamos, nós, leitores, podemos ver no romance uma possível alegoria do mundo moderno, onde as cidades grandes recebem seus novos moradores que se extravasam e se perdem na sua lascívia e amoralidade, onde pessoas se apagam e são apagadas pela megalópole que a tudo abarca, mas nada ver, muito menos as maldades sorrateiras que se escondem por trás das casas ou nos terrenos baldios.

E assim se vive nas sombras.



Referências

PEREIRA, Rogério. Na escuridão, amanhã. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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¹ Rogério Pereira é jornalista, criador do jornal literário Rascunho, Paiol Literário, Vidabreve.com, e o Quintana Café & Restaurante (um espaço dedicado à cultura e à gastronomia) e faz curadoria de bienais e outros eventos literários.



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3 comentários :

  1. Como sempre, caro Lial, texto de alto nível, engrandecendo a obra resenhada. Parabéns. Abraços. Pedro.

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  2. Obrigado, Pedro e Victor!

    Abraços.

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