Até que ponto
somos reais conosco, com o outro e com o mundo a nossa volta? Quanto de nossas atitudes
reflete a verdade dentro de nós, e quanto recebemos de verdade do mundo onde
habitamos?
No mundo que
enxergamos como real, muito do que há pode não passar de figuração, desvio e
inexatidão. Podemos quase viver, quase sermos felizes, quase amar e quase
sermos reais. E é assim que se dá a vida das personagens de Contagem regressiva (2014), livro de
Vanessa Maranha, onde tudo é quase o que parece ser, como tentarei mostrar a
seguir.
Numa visão geral,
o livro que apresenta de trás para frente a história de seu protagonista —
começa pelo capítulo III, que seria o último (fase idosa), e vai até o I (fase
da infância) —, numa espécie de inventário regressivo de vida que justifica o
título do livro.
Contagem regressiva se inicia num
hospital de saúde mental onde João, protagonista, interna-se voluntariamente, e
onde muita observação da vida e do outro lado da sanidade e da loucura se faz
presente, questionando também até que ponto os loucos são loucos.
Na fase adulta João
rumina sobre sua condição, seus amores perdidos e atuais, seus filhos e o mundo
ao seu redor; na fase infantil, quando menino inventivo e um tanto sádico, mata
lesmas para bancar o deus ou, como diz Ovídio Poli Junior na orelha do livro de
Maranha, é “um homem que em criança perseguia um antídoto contra a morte”. Ou ainda,
talvez matasse procurando determinar o momento de morte e ressurreição das
cobaias.
Na infância, seu
maior parceiro, e pai postiço, foi o anjo Nicolau (parte fantástica do livro).
Velho e de linguagem incompreensível, era o amigo imaginário do garoto, apesar
de poder ser visto pelas outras crianças mais próximas a João e por sua Tia
solteira e festiva, Palmira, que, num clima de Garcia Márquez, um dia se casa
com o anjo. Talvez a possibilidade do anjo ser visto por outros se desse para
aqueles que se permitiam sonhar.
Com Nicolau João
aprende sobre a perda na forma da partida, ou da morte, quando o anjo se vai, tornando-se
transparente. Fato que pode simbolizar o amadurecimento de João, largando as
crenças infantis com o afastamento do amigo mágico.
O mundo
narrativo se passa quase que completamente na mente do protagonista como num
fluxo de consciência. E tudo se dá de forma organizada, colocando o leitor progressivamente
na mente de João e na sua vida, enquanto o livro se desenrola, levando o leitor
a conhecer outros personagens que, de alguma maneira, entraram em contato com João;
Esses outros
personagens possuem menor presença no texto, mas, mesmo não tendo grande ação pessoal
ou individual na narrativa, concedem mais vida ao texto como escadas para a
maior exposição e compreensão da personalidade de João, o que também torna o
livro mais rico nessa fase da infância, com mais ação e dinamismo; sobretudo devido
a esses personagens de apoio.
Contagem regressiva trata-se de um livro
rico em psicologia humana, em relacionamentos amorosos, familiares ou amicais,
revelando personagens que perderam algo pelo caminho, que não foram felizes e
não se adequaram ao mundo, seja pelas circunstâncias seja pela obra maléfica de
outro ou por sua própria conduta condescendente consigo mesmo.
Enfim, tudo isso
é parte do livro, mas o que mais me chamou atenção foram as características imprecisas
e líquidas que permeiam quase todas as páginas. Nada parece ser o que pode ser,
tudo é frágil, tudo é quase certo. E como já indiquei no início deste texto, é
sobre esse quase que quero tratar.
Enquanto adulto
Nesta fase se dá
o momento mais agressivo de João, no que diz respeito a sua visão do mundo, ao
que sente e como se comporta.
A falta de
exatidão do mundo está em todo lugar, e tomamos conhecimento dela desde o
momento em que o protagonista se interna por vontade própria no hospital. Nesta
ocasião, quando a enfermeira, ainda preenchendo seu cadastro de entrada no
hospital, pergunta-lhe se tem esposa, sua resposta é dúbia: “Disse que várias e nenhuma. Foram-se, extinguidas
como fogueiras breves e me deixaram esses não–filhos”
(p. 15, grifos meus).
Contudo, apesar
de imprecisos, vale salientar que esses quases
não significam incorreção. No caso acima, por exemplo, a resposta é dúbia, mas não
inexata. Ele casou-se várias vezes e, no momento, não tem nenhuma esposa, bem como
com seus filhos não tem muita intimidade. Assim, o vago da resposta é o vago
real da sua vida, por isso, essa sensação de realidade forjada é parte
integrante dela, e não só uma reação proposital dele.
À frente temos
mais desses quases. Observando o
prédio onde vai ficar internado, João descobre paredes e outras coisas “falsificadas”:
“infiltrações em mofo disfarçado por
tinta nos ângulos, flores plásticas
sobre mesinhas” (p. 16, grifos meus). E mais à diante descreve um psiquiatra
que lhe entrevista, em sua opinião, também tomado pelo disfarce: “Penso que
deve haver nessas faculdades algum módulo que os ensine essas expressões postiças, esses olhos
fraternos, essa voz pastosa e monocórdia, como
se se elevassem, lúcidos, alguns degraus acima dos mortais loucos” (p. 16,
grifos meus).
Nesses exemplos
acima o próprio prédio é parte dessa vida de farsa que parece difícil de ser
extinta, remediada, pois o mofo não foi extirpado da parede, foi disfarçado com
tinta, encoberto como se faz com os problemas da vida difíceis de resolver,
feito aqueles que fingimos sanados, mas que continuam submersos logo abaixo da
superfície, pronto para saírem novamente. Além disso, há as flores plásticas,
tão falsas quanto a vida que João levou e a cura da insanidade naquele local.
Ainda no mesmo
plano das falsidades, os médicos que estão ali supostamente para uma cura ou
para trazer os doentes à realidade, oferecem a estes “expressões postiças”, fingindo
superioridade, representada no “como se”, dito pelo narrador no exemplo que citei
acima, pois este “como se” não é real, é algo que “se faz de”, que pretende
parecer, mas não é. Enfim, no manicômio, como o descreve João, nada é o que
parece ser.
Voltando ao
psiquiatra que o atende na ocasião, na mesma conversa, um pouco mais à frente,
ele sugere a João a mudança para o que chama de casa de repouso, o que para o
paciente não passa de mais uma farsa: “O doutor não está com eufemismos para evitar dizer asilo de
velhos?” (p. 17, grifo meu).
Mas a falsidade
e as aparências não param por aí naquele hospital. Os pacientes também são
parte disso, há algo dúbio neles que vai além do fato de serem loucos, há uma deformação
na imagem simplista de que seriam apenas loucos sem mais a se ver, como se pode
perceber nos exemplos a seguir.
Em certo momento
uma velha sorrir para João um sorriso sem dentes. E sendo os dentes uma parte
importante do sorriso, a falta deles, por si só, já tornaria o sorriso algo dúbio. Mas vai além.
Na descrição da velha, João diz que ela é “a imagem acabada do fim, ou alguma
espécie de desenho errado”, e
completa, “Mas, às vezes, mesmo um sorriso desdentado abraça. E há abraços amarelos que são coisa nenhuma” (p. 19,
grifos meus).
Tudo nessa fala parece
ser uma metáfora da falsidade da vida, do engano em que vivemos. A expressão
“desenho errado” é muito usada para se referir a uma pessoa feia — “ela é mal desenhada”
—, o que se configura em algo imperfeito, que foge aos padrões. E aqui não me parece
ser diferente. Assim como os abraços amarelos, por si só já falsos, sem graça, mas
potencializados na fala do narrador pela afirmação de que, mais do que simplesmente
falsos, são mesmo “coisa nenhuma”.
Tudo bastante
peculiar ao ambiente do hospital e a seus moradores como fica claro numa das
observações e descrições, numa fala quase poética, de João ao dizer que sob o
efeito das drogas aplicadas ali os pacientes se portam como cães obedientes,
“Juntos-sós” (p. 17).
São tipos
representantes da solidão, vítimas das drogas que mesmo vivendo em grupo não
estão acompanhados, estão sós. O “juntos-sós” é outra dicotomia da farsa, do
irreal, do quase (quase juntos). Uma
falsa imagem de comunidade, mesmo de presença, que, a primeira vista, mascara a
verdade de que cada um ali está de fato só, absolutamente só.
Mais à frente,
dentre as muitas elucubrações e observações que João faz do ambiente e de seus
colegas de internação, observando uma paciente gorda, ele filosofa sobre o
corpo e sua capacidade de falsear-se. Diz: “O corpo, aliás, conta a história de
uma pessoa, ainda que guarde em si a capacidade de ser ilusório. Mas, mesmo quando ilude, o corpo diz. Já os olhos delatam,
quase gritam, esses traiçoeiros” (p. 21, grifos meus).
Nesse trecho há
duas questões que quero comentar: a primeira é sobre o falso, uma das faces do quase, meu objeto de análise neste
texto. João diz que o corpo ilude, mas que mesmo iludindo diz algo, o que nesse
caso parece ser uma ação discreta, fazendo desse verbo, “diz”, algo suave e de
pouca força, se compararmos ao que fazem os olhos. E esse é meu segundo ponto.
Os olhos “delatam”, “quase gritam”, portanto, são muito mais fortes, incisivos
e agressivos do que o corpo. Assim, uma vez que são tão claramente nítidos, tanto
a verdade quanto as intenções parecem ser tão evidentes neles que poderiam não
falsear nada, e aparentemente não falseiam, pelo menos não na visão declarada
por João.
Contudo, mesmo
nessa cadeia de transparência propiciada pelos olhos, o texto, ou melhor, o
próprio João ainda faz uso do engodo, do contrário, do negativo. Ele chama a
esses olhos que tudo transparecem de “traiçoeiros”, ou seja, sendo verdadeiros,
traem seu dono; se não mentem para aquele que os veem, mentem, enganam seu dono
que é traído por si mesmo através dos próprios olhos. E assim, mesmo o que é
verdadeiro ao outro é engano a alguém, nesse caso, ao dono dos olhos.
E para
complementar a observação, assim como os olhos, “a forma como alguém se move ou
não se move é enredeira idem” (p. 21), também diz João. Tudo dentro do mesmo
âmbito da denúncia despropositada, assim como os olhos.
Ainda falando de
João, seus filhos são parte do engano, da falsidade, segundo ele acredita. Na
primeira visita que recebe deles, “a americanizada, o fujão, o medroso e a
antissocial” (p. 27), segundo sua descrição, depois de ouvir as perguntas do
porquê de ter se internado ali e a frase “Mas podia nos ter pedido socorro”,
tudo o que esse pai percebe é que “Ouvir essas palavras é enfrentar a medida da
hipocrisia e do cinismo de que somos capazes” (p. 27).
Seus filhos
sempre foram distantes. Conforme o pai vê, fracos, interesseiros e merecedores
de todos os descréditos, o que faz com que sua atual generosidade e preocupação
não o convençam. São sentimentos falsos, mentiras, desvelos que caem na sua
descrença, representada pelas palavras “hipocrisia” e “cinismo”, utilizadas
pelo próprio João.
Mas sua relação
com os filhos, como ele mesmo admite, é também culpa sua. Nunca quis ter filhos e se manteve distante
dos seus, com os casamentos breves que sofreu e os muitos desvios que tomou, o
que lhe fez também se assemelhar ao pai que teve, ou melhor, como ele diz, “pai
que tive-não-tive” (p. 28). Diante disso, voltando a Ovídio Poli Júnior, João
era “ressentido pela ausência do pai”. E isso parece ter se tornado um espelho
indevido e inesperado na personalidade de João.
É sempre assim
na sua vida, as coisas quase são ou quase não são. Nada é realmente completo e íntegro.
Com seu próprio pai, João viveu uma relação de ausência, de não paternidade
como é mostrado na parte do romance que retrata sua infância, quando seu pai vai
embora, depois de ter sido um homem distante, mesmo vivendo com ele; o que já
se configura numa outra forma de ser não
sendo, como tudo que tenho retratado até aqui. Questão que veremos mais
detalhadamente à frente.
Agora sendo pai,
tendo seus próprios filhos, João também é-não-sendo.
É quase pai, é uma possibilidade que nunca se configurou. Mais um traço do quase na sua história.
Esses quases também se estendem aos seus amores
como no caso de uma das suas esposas, chamada Antônia, quando o deixou, depois
de suportar por algum tempo a sua frieza e afastamento. Como ela mesma disse, no
momento em que abandonava João: “meio
amor é amor nenhum” (p. 33, grifo meu).
Para um homem
que vive tantas situações incompletas, falsas e rasas, amar não poderia ser uma
coisa completa, e pelo menos até aqui não foi. Tudo o que dava a sua esposa era
metade do que deveria sentir; o que, na concepção da esposa que parte, é nada.
E assim a vida segue incompleta para João e para aqueles ao seu lado.
Mas esse mundo
falso e frágil de João extrapola seu próprio ser e universo que depende
exclusivamente de si. Mesmo o que está fora dele e do seu domínio surge na
forma rarefeita do quase, do engano –
pelo menos segundo ele vê.
No hospital onde
se internou, que chama de hospício, a terapia a que é convidado a participar é
descrita por ele como uma “seita sofisticada, filosófica. [...] uma franquia máster de um Freud deturpado, embora o tratassem como
totem, seus textos sacralizados, a obscuridade
de rebanho e patrulha miliciana que o verdadeiro
Freud desaprovaria” (p. 35).
Nessa citação,
alguns pontos reforçam o caráter de falsidade e desvio da verdade. De fato,
todo o contexto e a forma como as frases dessa citação são elaboradas já
apontam para isso, e se observarmos as palavras usadas veremos a força
encontrada por Vanessa Maranha para alcançar esse tom. São elas: “franquia” que
diz respeito a algo que se assemelha à sede, mas não é ela, portanto, não é o original,
não é o real; depois temos a palavra “deturpado” que representa algo
distorcido, deformado, degradado do real, do verdadeiro, adulterado, corrompido
e — bastante conveniente — falsificado, que dispensa mais explicações dentro do
contexto que aqui apresento.
Depois dessas vem
“obscuridade”, que tem entre seus significados “incerteza” e “ambiguidade”, ambos
desvios do objeto real. A primeira algo inconvicto, que pode ou não ser; a
segunda, algo que pode ser duas coisas ou nenhuma delas, que vacila, uma insegurança,
dúvida e até mesmo equívoco, portanto, impreciso como tudo que vimos até agora.
E por fim temos a palavra “verdadeiro” que aqui aparece como uma contestação,
uma certeza de que tudo o que é feito nessa terapia está longe da verdade, algo
que seria desaprovado pelo terapeuta real, Freud. Logo “verdade”, nesse caso, é
“inverdade”.
Assim percebemos
que numa simples passagem como essa, uma descrição crítica do protagonista,
podemos encontrar uma gama de revelações de dissociação do real.
Contudo, como um
aprofundamento de todos os enganos, até aquilo que João pensa sobre si mesmo
pode ser falso; inclusive o mal que a si atribui pode ser exagerado, segundo
lembranças de seus filhos que, representados por Mauro, diz que João “não era
quem agora pensava ter sido” (p. 36-7). Ou seja, segundo Mauro, quando o pai
estava com ele e os irmãos, no passado, demonstrou afeto, preocupação e foi
mais presente do que João julga ter sido.
Nesse engodo, nem
as mais aparentes e fortes verdades, como aquelas que dificilmente julgaríamos
falsas por se tratarem de auto-ofensas, estão livres do engano. E não é comum
que alguém se autorrebaixe tão facilmente, principalmente para induzir o mundo
exterior a um julgamento negativo de si mesmo, como faz João ao ver o mal em
tudo e alegar falsidade nos filhos a partir do que ajuíza ser efeito do mau pai
que ele julga ter sido. Enfim, as mais aparentemente reais verdades, na voz de
João, podem ser mentiras, enganos para, talvez, legitimar seu mau-humor, sua
visão nefasta do mundo. Do protagonista desse livro nem mesmo o escárnio que
faz de si mesmo é garantia de sinceridade.
As
características de quase de João me
faz pensar num possível estado clínico do qual ele pode ser vítima. Estou me
referindo à melancolia; mas não a romântica que se espraia pelas biografias de
artistas excêntricos e ex-parceiros chorosos e silenciosos com o fim de algum
relacionamento amoroso, estou me referindo à melancolia na forma de caso
clínico descrito por Sigmund Freud em seu texto “Luto e melancolia” (1917).
Segundo ele,
A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminação e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante da punição (p. 47, grifos meus)
Observando a
descrição de Freud, percebe-se, antes de tudo, que não se trata da melancolia
como se costuma ser nominada hoje, um simples estado de silêncio, afastamento e
tristeza poética que inspira artistas. Freud cita a melancolia como algo
pesado, um estado clínico que vai além da depressão profunda. Esclarecendo
isso, vamos em frente.
Não afirmo que o
personagem João seja um típico caso clínico da melancolia apontada por Freud,
mas em suas atitudes podemos ver claramente traços que nos remetem a ela, como os
destacados nas partes que grifei na citação de Freud, por exemplo, a suspensão do
interesse pelo mundo externo e a inibição de toda atividade.
João, já no
início do livro, interna-se num hospital, fugindo do mundo, avesso às pessoas e
as suas verdades, mentiras e comportamentos falseados. Quanto à perda da
capacidade de amar, citada por Freud, João teve muitas mulheres, mas parece
nunca ter se entregado a nenhuma, e agora se vê sozinho, desesperançado. Além
disso, há o rebaixamento da autoestima, a autorrecriminação e os autoinsultos.
Não é só o mundo
que agride João, mas a sua própria pessoa, sua própria história de vida:
“Quando me tornei tal miséria, exatamente não sei” (p. 29), diz ele.
Considera-se um fracassado como o pai: “Apenas seguia repetindo uma sina de
infelicidade que eu não havia riscado, mas que, afinal, estava como herança.
Vou sendo o meu pai, eu pensava” (p. 33). E isso o leva a julgar ser a pessoa
que seu filho Mauro disse não ter sido antes, como vimos em citação anterior,
bem como o leva a esses sentimentos que acabaram conduzindo-o ao “hospital de
loucos”.
Ainda buscando
traços da melancolia dentro da pessoa de João, em outra parte do mesmo artigo
Freud diz algo mais que aproxima o melancólico desse personagem:
Se se ouvir com paciência as múltiplas autoacusações do melancólico, no fim não se deixará de ter a impressão de que as mais violentas dentre elas frequentemente se adéquam muito pouco à sua própria pessoa, mas que, com ligeiras modificações, se adéquam a uma outra pessoa, a quem o doente ama, amou ou deveria amar. [...]. Desse modo tem-se à mão a chave do quadro clínico, na medida em que se reconhecem as autorrecriminações como recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o próprio ego. [...]. Também o comportamento dos doentes fica agora muito mais compreensivo. Para eles, queixar-se é dar queixa no velho sentido do termo; eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos, no fundo dizem de outrem. E estão bem longe de dar provas, perante os que os cercam, da humildade e da submissão que conviriam a pessoas tão indignas, pelo contrário, são extremamente incômodas, mostrando-se sempre como que ofendidos e como se uma grande injustiça tivesse sido cometida contra eles. Tudo isso só é possível porque as reações da sua conduta provém sempre da constelação psíquica da revolta, que depois, em virtude de um certo processo, se transportou para a contrição melancólica.” (p. 60-61, grifos do autor).
E completa:
[...]. Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma pessoa determinada; graças à influência de uma ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada, essa relação ficou abalada” (p. 61, grifos do autor)
Como eu disse
antes, o quadro de João possivelmente não concorda em todos os pontos com um
quadro de melancolia freudiana, falta-lhe o certo ar silencioso, acabrunhado,
porém, outros pontos convergem como, além dos já citados, o fato de João se
dizer um mau pai e se considerar uma miséria, enquanto se compara com o seu próprio
pai que assim foi, parecendo que quando se deprecia, deprecia na verdade seu
pai, o homem a quem amou ou deveria amar, como sugerido por Freud — ou pelo
menos a esse pai se compara na forma de revolta com o mundo, esse pai que, como
veremos mais à frente, foi um pai distante, difícil que abandou a ele e a sua
mãe. Mãe que também não está longe de ter sua parte na culpa por quem é João,
uma vez que foi uma mulher dissimulada e distante também, mesmo que de uma
forma diferente do marido, como detalharei mais adiante.
Outro ponto
convergente com a melancolia de Freud é a falta de humildade e submissão.
Apesar de considerar-se uma miséria, João não se apequena perante os outros, ao
contrário, mostra-se incomodado com a atitude desses, o que podemos perceber
nas suas observações sobre o mundo ao seu redor e sobre a índole dos filhos
como se tudo e todos fossem seres menores que o ofendessem.
Assim, João,
como parte desse universo de ambiguidade e imprecisão encontrada no livro, diz
ser alguém que talvez não seja. Acredita que dos trinta aos cinquenta viveu
levado pelas circunstâncias, numa vida de escapismos, muitas vezes com
“mulheres sorrateiras”, o que fazia com que grande parte das mulheres com quem
viveu também se devotassem em obrigações por ele — ele que “não era amparo” (p.
83). Assim, segundo João mesmo se descrevia, era “Eu, um outro no meu lugar”
(p. 83). Como numa forma de vida mecânica, automática onde aquele que vive não
pensa, não sente, não é verdadeiramente presente, mas outro que se locomove
movido pelas circunstâncias, configurando-se assim em mais uma falsidade, mais
um quase, quase um marido, um homem,
um ser vivente.
Mas não é só
João e o ambiente do hospital que possui uma vida falseada no livro, outras personagens,
noutros ambientes, também usufruem desses engodos como veremos a partir de
agora nas observações do capítulo I (capítulo final) que se refere à infância
de João.
Na infância
Na infância de
João essa áurea de fragilidade do real e de falseamento já existia. Além do pai
que vivia distante, até o dia em que foi embora, sua mãe também não estava
presente, pelo menos não de mente e corpo como podemos ver a seguir.
Numa das
passagens do livro a mãe de João faz bolos na cozinha, quando ele chega e a
fica observando. Ela o enxerga, porém, como diz seu filho, “eu estou do lado de fora dela” (p. 130, grifo
meu). Assim, ela não o vê realmente, como se João fosse transpassado por sua
visão. A visão da mãe passa por entre o menino, e assim João quase existe.
Mais à frente, João
se refere à mãe como culpada também pela partida do pai, o que João deduz,
depois de conviver tanto com a mãe, descobrindo outro lado dela que não conhecia:
a propositada surdez. De espírito aparentemente ausente, ela, assim como não
escutava o seu pai, também não escutava o filho. E com essa atitude, sua
presença na família, tal qual tantas outras coisas, não era real. Sua surdez
fazia dela uma quase mãe, uma quase esposa. Uma mãe e esposa
incompleta.
Diferente do
pai, a mãe sempre colocava panos quentes em tudo, como se fugisse do conflito
ou pouco lhe importasse o que ali ocorria, agindo sempre com uma doçura
disfarçada, enquanto o pai, o Rei, como o chamava João, “era quem dizia as
coisas chamando-as pelos nomes” (p. 155), botando para fora seu incômodo e
revolta com tudo. Ou seja, a mãe era mais uma a mentir na sua vida, a burlar as
coisas, a fugir da realidade, como diz João: “mamãe, na sua delicadeza infinita, punhal de afeto, não escutava ninguém de
verdade” (p. 155, grifos meus).
Na expressão
“punhal de afeto”, da citação acima, o narrador dá mais uma mostra da dualidade
dessa mãe, unindo numa mesma construção algo que fere e mata a algo que
acaricia e conforta, configurando-se em mais um estado de realidade duvidosa,
falseada, na pele de uma mãe dissimulada e distante que fingia ouvir o marido,
mas não o ouvia, que se entregava em delicadezas para não precisar ouvir, para
fingir atenção, inclusive ao filho, a quem nem mesmo quando este dizia as
coisas mais importantes ou perigosas, como declarar que sabia das “histórias
cabeludas dela por aí” (a mãe tinha amantes), ela o ouvia.
Quanto ao pai, este
era “um homem sempre em guerra, consigo próprio, com o mundo” (p. 134),
descreve-o João. Um homem de vida infeliz que não assumia seu fracasso para não
admitir que deveria ter percorrido outro caminho:
O meu pai tangenciava sem encarar a percepção do atalho equívoco que pegara na vida, o mesmo que o trouxera até este momento. Mas assumir a própria responsabilidade de ter percorrido tão obstinadamente o caminho errado significava pensar que poderia ter feito diferente, e tal dor implicava em que o melhor era ficar mesmo nas acusações aos outros (p. 134-5, grifos meus).
Se observarmos
as palavras que grifei na citação, veremos que “tangenciava”, que tem como um
dos significados “resvalar”, já dá a ideia de algo não propriamente exato,
reto. É um caminho ao lado, algo que quase ocorreu. E “atalho” também pode significar
“desvio”, que seria uma fuga do caminho original ou desejado. Mais à frente, ainda
na mesma citação, vemos “diferente”, referindo-se a um caminho que poderia ter
sido tomado, mas não foi. Enfim, tudo se refere a caminho nessa observação de João
sobre o pai e seu caminho torto que o levou a uma vida quase.
Em outras partes
do texto encontramos mais exemplos da vida quase
de que falo. Num comentário de João que parece se passar na ceia de Natal em
família, ele julga que “Por algum tempo, no decorrer da noite, parecia que sim, as pessoas se amavam”
(p. 139, grifo meu). Mas percebam o verbo, “pareciam”, ou seja, não eram. O que
é comprovado no momento seguinte quando seu pai dá um soco na mesa para calar as
avós, Palmira e Laura, com palavras feias, e sai para o quarto.
Noutra parte,
quando o pai anuncia a separação da esposa, todos ficam calados, sem coragem de
reclamar. João descreve essa condição estática como “não-fala”, e mais à frente, talvez se referindo ao pai, diz: “Eu
ficava por imaginar se algum dia seria eu também assim, forte-fraco” (p. 140, grifos meus).
Nessas
construções ambíguas “não-fala” e “forte-fraco”, encontramos a indecisão, a
hesitação, o titubeio de querer falar mas não falar; o duvidoso, o impreciso, o
indefinível, o obscuro de ser “forte-fraco”, enfim, outros casos de quase.
Mais tarde, para
que sua tia Palmira se case com Nicolau, o anjo, uma espécie de amigo imaginário
de João — sobre quem falo logo abaixo —, ambos, sobrinho e tia, mentem para a mãe
de João a fim de evitar ir ao aniversário do Tio Joca, ficando em casa para a
cerimônia de casamento. E para que tudo dê certo, o que ocorre é uma sucessão
de fingimentos, “Finjo estar doente”, diz João, “tia Palmira finge cuidar de
mim e mamãe finge acreditar” (p. 153).
Sobre esse anjo
Nicolau, sendo ele uma figura importante na vida do menino João, vale uma
apresentação e alguns comentários. Diz-nos João que Nicolau era
o anjo que vez ou outra descia para me fazer companhia no jardim imenso. Devia ter uns quinhentos anos, asas caídas de velhice, um voo engazopado, pele translúcida, olhos cor de violeta, um jeito inglês. Devia ser inglês o Nicolau. A sua língua de anjo em voz de harpa eu nunca entendi, embora o compreendesse perfeitamente (p. 94-95, grifos meus).
Na vida do
menino, o anjo era como os amigos imaginários de muitas crianças, com uma
diferença: enquanto os amigos imaginários só costumam serem vistos pela criança
que o fantasia, Nicolau podia ser visto por outras crianças, assim como pela
tia Palmira que, como vimos, casa-se com ele. Uma cena típica de Cem anos de solidão (1967), de Gabriel
García Márquez.
E claro, na
figura do anjo, não poderia faltar o quase,
a meia verdade, já bastante nítida no simples fato de sua existência mágica
entre crianças e adultos e de suas características, bem como das características
percebidas por João nele, entre elas, como visto ainda na citação acima, o fato
do anjo de quinhentos anos ter um voo “engazopado”. “Engazopar” pode significar
“enganar”, “iludir”, “ludibriar”, enfim, “o que faz alguém cair em erro ou
engano”, o que nos descreve um voo defeituoso, irregular, anormal, um quase voo.
Quanto à pele de
Nicolau, esta é “translúcida”, portanto, diáfana, semitransparente, quase
sonho, como uma imagem surreal que tem presença frágil, quase inexistente ou quase
sólida.
E por fim, a
língua do anjo que João não entendia, mas compreendia bem. Questão que poderia
parecer dúbia, ambígua, incerta, uma espécie de nem diz que sim, nem diz que
não, mas não é – não exatamente. Afinal João diz “embora o entendesse” e não “a
entendesse”. O pronome “o” diz que ele afirma compreender o anjo no contexto do
que diz, segundo vejo, e não que compreende sua língua propriamente. Portanto,
o que considero importante aqui não é essa meia-ambiguidade, mas o fato de,
apesar de não entender a língua do anjo, o menino consiga compreendê-lo numa
forma mais ampla, a ponto de se comunicarem. Fato que não evita o quase, uma vez que o entendimento entre
as partes é anormal, incomum, portanto, a comunicação se dava num quase diálogo.
Como sugeri no
final da primeira parte deste ensaio, essa característica de quase, sobre a qual estou insistindo
nesta análise, vai além do convívio familiar de João. Encontramos essas mesmas
impressões em outras famílias e pessoas que compõem as personagens do livro
como a invejosa Jerusa, mulher com claro desvio de caráter, que se faz amiga de
Milza (p. 105), mulher de Loredano, de quem Jerusa gosta, para acabar com o
casamento dos dois.
Jerusa era uma
mulher que não amava os próprios filhos porque eram filhos com um homem de quem
não gostava, o que a coloca também na condição de quase: quase mãe, quase esposa; numa vida falseada, casada com um,
mas desejando outro.
Há também Saula,
uma das amigas da infância de João, tratada como louca, mas que na verdade
parece apenas ser alguém que quer fugir da prisão imposta pela mãe, sendo
vítima da loucura desta que é toda “fingimento”, “dez caras” (p. 161), como diz
a própria filha; o que faz da mãe da menina outro exemplo da falsidade presente
nos personagens desse livro.
Como Saula
afirma sobre a mãe: “Nem a sobrancelha é de verdade, tudo postiço. Mostra-se culta, letrada, amante dos livros, mas a verdade
é que passa os dias em fofocas e tramoias.” (p. 163-4, grifo meu). E no
adjetivo “postiço” temos uma boa alegoria da vida dos personagens no livro:
vida postiça. E “postiço” tem entre seus significados: “fingido”, “artificial”,
“simulado” e “falso”, o que reforça as características dos personagens já tão
demonstradas neste texto.
Talvez Vanessa
Maranha não tenha escolhido muitas dessas palavras de seu livro de forma
premeditada, tendo o intuito de que várias delas funcionassem como metáforas da
falsidade que atravessa todo o texto na vida de seus personagens, mas isso
ocorre, muitas delas são boas metáforas dos personagens, e não é estranho que isso
aconteça mesmo sem a consciência da autora, visto que muitas vezes a própria
construção do livro pede isso e dita o caminho à revelia de seu autor.
Enfim, como
vimos nesta simples análise, a meia-verdade,
o próximo de, o mais ou menos ou o quase
como eu quis chamar, dentro de uma característica de incompletude, de
imperfeito, deficiente, pendente e defeituoso, é a nuvem que paira sobre não só
a história geral do livro ou de seus personagens, individualmente, ela também é
parte das ações e características de muitos dos personagem.
Já no que diz
respeito ao romance, este de quase
nada tem. É um belo texto, escrito com acuidade e profundidade, sobretudo,
psicológica de seus personagens. Um livro que merece sua leitura, assim como Oitocentos e sete dias (2012), sobre o
qual escrevi há alguns anos no ensaio “O peso de existir em Oitocentos e sete dias, de Vanessa Maranha”.
Boa leitura!
Referência
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad.
Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
MARANHA,
Vanessa. Contagem regressiva. Paraty:
Selo Off Flip, 2014.
Durante a leitura, coloquei a música: Fake Plastic Trees, uma boa trilha sonora para o texto. Excelente texto como sempre, vou comprar este livro.
ResponderExcluirUm abraço!
Obrigado pela leitura, meu amigo!
ExcluirA música é uma boa companhia.
Abraço!
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