29/12/2016

dezembro 29, 2016
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Em um mundo dominado pelo masculino, pelo macho dominante, mulheres reagem de formas diferentes. Entre as muitas reações, algumas se reprimem, contém suas fantasias e vontades, desviando essa energia para uma personalidade autoritária, fechada e rabugenta, enquanto outras se soltam desbragadamente, enfrentando as consequências disso, frente à condenação da sociedade. Contudo, há ainda o tipo que faz tudo, ou quase tudo, o que a anterior faz, mas de forma clandestina.

Esse último tipo se assemelha à Eunice, personagem de Corpos furtivos (2015), mais recente romance de Chico Lopes. Nele o mundo feminino do desejo se apresenta como afronta a um mundo dominantemente masculino, religioso e preconceituoso.

Eunice e sua irmã Wanda são duas solteironas já entrando na meia idade – Eunice tem 59 anos e Wanda é mais velha. Wanda se assemelha ao primeiro exemplo que citei no início do texto: fechada, rabugenta, religiosa e organizada ao extremo. Eunice sonha outra vida, livre, sem a vigília da irmã, amada por um homem que a satisfaça e a veja. Mas enquanto isso não acontece, vive suas aventuras amorosas – bem, nem tão amorosas assim como veremos a seguir. Eunice e seus desejos são meu foco neste ensaio.

Nice, como também é chamada, é de natureza saudosista, lamenta as épocas que se foram, detestando os novos moradores da cidade que vê como pessoas sem educação, em suas motocicletas ou nos ônibus, frios, apressados, ocupando bares e restaurantes sem respeitar a presença dos antigos moradores, frequentadores dessas ruas e lugares antes deles:

Pouco a pouco, essa cidade deixara de ser sua, era praça ocupada, território pisado por bárbaros, uma coisa para inúmeras patas desconhecidas, terrível como vaga alta de um mar obscuro que vinha desfazendo segura e inapelavelmente o senso de aldeia que ela adquirira em anos de placidez e tédio, a segurança – ainda que de engaiolada – que ela sempre sentira (p. 24).
O trecho acima exemplifica as cidades pequenas que vão tornando-se maiores. Seus moradores, acostumados a verem as coisas de uma mesma maneira, imutável, previsível, incomodam-se com as mudanças. Mesmo no caso de Eunice, a viver engaiolada, mais dentro de casa do que fora, isso faz diferença, pois há uma sensação de insegurança no ar.

Diante desse mundo, Nice, solitária como a irmã, desejava outra vida, e nessa outra vida um homem; mas não qualquer um, queria um forte que lhe visse como ela se sentia, como era em suas entranhas. Assim, vítima desses desejos, por vezes, delirava diante dos homens, delírios sexuais, pervertidos como na vez em que visita um advogado e o observa, no que ela acredita ser uma performance de macho para seduzi-la:

Ela sorvia tudo o que ele ia dizendo, menos atenta a significados que à voz: ele tinha uma gripe ou impostava aquela rouquidão meio sussurrante, convidativa, toda alusões, sons que pareciam lhe vir de alguma entranha dominadora – voz de pênis, se pênis falasse? Já tinha capitulado, ele poderia leva-la para onde quisesse, sacrificá-la sordidamente num banheirinho apertado como aquele do corredor ao lado do consultório do qual, aliás, ele já fizera muito uso sedutor, e ela tudo aceitaria, acharia que a retórica de primeira legitimaria aquele rápido verter de esperma num oco ansioso; assim são nossos deuses, esse aí outro deles, esses olhos de pena de periquito raro, essa voz, minha nossa! Confie, e será devorada. Pior: gostará de sê-lo, e ficará pedindo mais. Pelo resto da vida. Quanto a ele, se cansará rapidamente (p. 210, grifo meu).

O sexo dominava seus pensamentos, e nesse domínio ela conseguia criar uma associação entre pênis e voz, atribuindo uma voz característica ao membro masculino. Demonstrando o vigor com que se entregava a esses delírios sexuais, como eles a dominavam, a perseguiam.

Quanto ao advogado, depois dessa “visão”, ela conclui que tudo não passa de automatismo do bacharel. Supõe que ele já a olhara atentamente e vira que não valeria a pena, que ela era feia. E diante dessas conclusões, sua baixa autoestima, e possivelmente a crueldade do mundo, levava-a aos braços de homens sexualmente viris, mas grosseiros, de péssimo caráter, diferentes dos sonhados.

Assim, apesar de todo o desejo, sua baixa-autoestima arrefecia a crença num relacionamento como desejava; considerava-se feia para muitos dos homens que almejava, pouco atraente, um tipo que não lhes interessava como diz o texto: “[...] poucos a notavam, porque ela sempre se sentira incapaz de despertar desejos, a não ser nos indesejáveis” (p. 99). E sofria: “Cruel caberem tantos desejos, tanta sensualidade, num corpo tão pouco atraente” (p. 100). 

Apesar disso, Nice segue com suas aventuras sexuais. E enquanto elas são reveladas deparamo-nos com momentos que nos desvelam o universo feminino da submissão forçada como na cena de sexo com Tadeu – turrão, grosseiro. Nesse trecho, a impaciência de Tadeu é tão latente que não só busca se impor ao seu objeto de desejo, mas se torna cômico, ridículo na sua sede por prazer com o discurso que procura introduzir na voz de Eunice.

Ele a leva para uma casa em construção e quer sexo de qualquer jeito. Mas ela o recusa devido ao lugar e a sua sofreguidão. Diante da recusa, Tadeu põe o pênis para fora e o mostra à Eunice. Roga que ela olhe, mesmo que não faça nada, apenas o observe se masturbar:

Não precisa mais nada, só fica me olhando assim, espantada, está assombrada. Assombreada... Olha, olha para cá. Ui, que barbaridade, Tadeu! Eu nunca vi um tão grande assim. Enterra tudo, enterra tudo. Não é isso que quer dizer, minha égua? Não é isso?
− Não vou dizer nada. – Ela virou a cabeça, preferia fitar o reboco.
− Não, não, diz alguma coisa. Repete o que eu disse.
− Não vou dizer nada.
− Ingrata, ingrata...
A curiosidade fez com que se virasse, que o observasse executando o que precisava executar, estranhando que pudesse tirar tanto prazer de ser olhado por uma criatura tolhida que era forçada a contemplar o seu trabalho de mão (p. 93-94, grifo do autor).
Apesar do toque de comédia em Tadeu dá voz à Eunice “assombrada” com seu pênis, a tentativa de forçar o sexo e a realização do desejo, mesmo que solitariamente de Tadeu demonstra não só a tentativa de dominação do homem sobre a mulher, mas também a total falta de respeito à vontade dela. O prazer do sexo é algo que diz respeito apenas a ele, o macho, seja como for. À mulher cabe participar na pratica ou na observação do prazer dele e de seu falo, símbolo de poder.

No ato de Tadeu, obrigando Eunice a olhar, a contemplar seu sexo, encontra-se uma forma de estupro, não físico, mas moral. Ele quer o sexo de qualquer maneira; se não tem forças para obriga-la a tocá-lo, a deitar com ele, obriga-lhe a vê-lo fazer sexo consigo mesmo, a vê-lo se satisfazendo, alcançando o gozo que é só dele; e que não teria sido diferente, caso Nice houvesse se deitado com o “amante”, pois mesmo que ela alcançasse o gozo, o gozo dela seria dele, seria obra dele, da sua macheza, sedução, vontade e domínio. Por isso ele é o macho opressor e dominador.

Porém, nem só de desejos sexuais vivia Eunice, ela também cultivava desejos mais triviais como fumar, ouvir música alta e voltar tarde para casa. Prazeres que percebemos não lhe serem vulgares como no caso ocorrido, tempos antes, quando sua irmã viajou, deixando-a sozinha em casa. Isso lhe deu, a princípio, um ar de liberdade, de tudo ser capaz: “[...] ela se sentiu poderosa, despudorada, capaz de qualquer coisa, a casa toda para si, ouvir os discos no volume que bem entendesse, fumar até ficar azul de tanta fumaça engolida, sair e voltar para casa na hora que lhe desse na telha” (p. 99).

Isso por que Eunice sempre foi vigiada, antes pelos pais, depois pela irmã, sem liberdades para sair e voltar a hora que bem entendesse nem fumar despudoradamente o quanto quisesse. Havia certas prisões na forma de crítica da irmã, da sociedade em que vivia e da educação tradicional familiar que recebeu e que lhe tolhiam. Enfim, seu mundo não era todo seu como bem entendesse.

Ademais, quando Nice se refere à liberdade de estar sozinha, de estar livre, como “despudorada” temos aí certo nivelamento entre seus desejos sexuais e sua liberdade de agir em outras áreas. Para ela, a liberdade de sexo, de amar não é tão diferente da liberdade de agir, de realizar pequenos desejos como ouvir música alta e fumar. O que parece lhe faltar é liberdade, seja qual for, seja para o que for.

Nesse mesmo dia de liberdade, à noite, Nice vai à caça. Pela praça da cidade anda a roçar alguns homens “onde a interessava, pedindo desculpas e passando” (p. 99), até encontrar um tipo machão na sorveteria, um “macho satisfeito” (p. 99), cigarrinho no canto da boca, topete, um arquétipo perfeito para quem estava “propensa a atrevimentos” (p. 99). “Atrevimentos”, subtendido, na linguagem de Nice, como algo ligado também ao erotismo, ao sexo.

Com o “macho satisfeito” perde a virgindade numa colina, apoiada à tampa do porta-malas do fusca. E no ato, mais uma demonstração de dominação masculina sobre a mulher. Ele a conduz, satisfaz-se como quer e se sente poderoso:

[...] o que fez foi conduzi-la, com abraços, cócegas, brincadeiras, abusos, lá para trás, para a tampa do porta-malas¹, pondo-a de quatro, depressa, tomou consciência da dificuldade rara, soltou um “oba” em voz muito alta, esfregando as mãos, alegre de romper, enquanto ela permanecia estoica, certa de que tudo cabia mais a ele, sabedor – e por isso, por essa estranha certeza de que havia nele uma forma inegável de direito, não reclamou, não reclamou. Ele ficou todo entusiasmado depois que viu sangue, uma festa, não era? – lambeu o indicador onde um pouquinho grudara. Se mal a enxergava, ao menos tinha orgulho de fazer muito bem o que fazia e procurava marcar pontos na evolução de sua habilidade. Seus êxtases eram só por si mesmo, por sua eficácia (p. 102-103, grifo meu).
Nas partes que grifei acima estão trechos que podem nos dizer um pouco mais sobre a relação de Nice com seus parceiros, pois eles não variam muito entre os casos diferentes que conhecemos no livro.

Ainda no começo da citação o “conduzi-la”, que corrobora e reafirma a passagem “certeza de que havia nele uma forma inegável de direito”, demonstra a posição de domínio masculino, de escolher e dirigi-la para onde quer; uma posição reconhecida por Nice ao acreditar que ele tem esse direito, um direito nato e inerente ao homem. Por isso, mesmo que não esteja confortável com a situação, como parece ser o caso, uma vez que o texto repete “não reclamou, não reclamou”, como se ela desejasse reclamar, mas não o fizesse, enfim, mesmo que não esteja confortável, ela nada faz, não reclama.

Quanto a ele, o dono do fusca, é todo entusiasmo. Para ele aquilo não era apenas sexo, era poder representado no sangue que viu, “uma festa, não era?”, quase um culto ao domínio, a Baco. Na alegria de desvirginar a moça, esfrega as mãos, “alegre por romper”. É um desbravador poderoso que ultrapassa uma dificuldade como se ultrapassasse um obstáculo qualquer de domínio. Não vê nisso uma relação com uma pessoa, mas uma ação de conquista a ser concluída e comemorada, uma vitória.

E lambe o sangue no dedo como o conquistador bebe o sangue dos vencidos em batalha. Isso por que ela não era ali uma mulher, um ser que merecesse o seu respeito, pois ele “mal a enxergava”. Nada estava além do seu orgulho, nada estava além de si mesmo. Tudo era apenas ele, para ele; assim como o outro, parte pertencente a ele, sempre ele.

Assim, deu-se a primeira experiência de uma mulher que via o sexo como uma força masculina, um domínio dos homens, onde ela tinha um papel de coadjuvante, estando ali para servir como ocorre em toda a sua vida posteriormente, mendigando centavos de prazer com homens que, assim como o primeiro, não a enxergam, não se importam com o que ela quer ou deseja. Eles, sempre eles.

Dessa forma, nesses pequenos arremedos de prazer, o narrador vai abrindo-nos aos poucos a personalidade de Eunice. Paulatinamente flashes do seu passado assomam, e tudo se revela com certo apelo sexual na mente de Eunice; desejos que acabam por simbolizar todo um universo de dominação masculina, onde a mulher que vive de migalhas sexuais e de atenção funciona como uma alegoria dos desejos frustrados femininos no universo masculino, bem como sua situação de inferioridade perante os homens.

Contudo, Eunice era diferente na essência do que aparentava. Sentia-se aprisionada pelo pai que a vigiava e pela irmã que assumira o posto quando o pai se foi. A prisão estava dentro de si: “Tinha vontade de ser diferente, de rir, de gritar, de se permitir absurdos, pular decididamente para fora de si mesma” (p. 131), mas não conseguia.

Por isso guardava seus desejos que se acumulavam e pareciam crescer com a dificuldade de realizá-los, frente ao grande “não” da sociedade que a educara e vigiava. Crescendo esses desejos pareciam tornarem-se mais lúbricos, libertinos e libertários como no seu retorno à Igreja, tempos depois de um episódio fatídico quando tentou beijar o padre. Ali, sozinha, lembrando-se desse passado, ela rezou, mas não pedindo perdão pelos seus pecados,

rezou para que, numa esquina, nalgum topo de escada, na virada de uma das aleias da praça, o desconhecido estivesse a sua espera, disposto a falar com ela e sequestrá-la para um estado impossível, algo entre nuvens, lá onde os atos mais reprováveis perdem a sujeira e assumem legitimidade, uma mudança violenta em seu destino (p. 135, grifo meu).
O desconhecido a que se refere acima é um homem que viu e sentiu seu cheiro certa vez na rua, passando a procura-lo pela cidade. Ele, a representação do seu objeto de desejo masculino e um sonho, uma fantasia que gostaria de realizar.

Quanto a sua reza, a vontade de ser levada pelo desconhecido, a aceitação e mesmo a ânsia de viver os atos mais reprováveis, lá onde eles são aceitos e legitimados, é mais do que um simples desejo erótico, sexual, depravado, é sua vontade de ser livre, completamente livre, num mundo idealizado, onde tudo é permitido, onde ninguém a vigia ou reprova, onde um padre pode ser beijado por ela, possuído por ela e ela por ele. Como ela diz, reza por uma mudança no seu destino miserável, no qual mendiga o toque dos homens e a felicidade que vem a conta-gotas – se vem.

Consequentemente a reza é por mais do que prazer sexual, é por liberdade, e o tom de desejo depravado é apenas a demonstração do anseio de uma vida sem limites, sem prisões, outra que não a sobrevivida até hoje.

Essa liberdade ansiada, percebia via Eunice, era permitida apenas aos homens. Diferente das mulheres, os homens tinham mais permissibilidades; quase tudo lhes era lícito, pouco importando quem fossem, que classe ocupassem na sociedade, se ricos ou pobres. Um traço social encontrado em vários momentos do livro, dentre eles nos pensamentos e nas falas de Eunice como na vez em que conversa com sua amiga Brunilde sobre os novos moradores, sujos, mendigos e mal-educados da cidade, a urinar em qualquer lugar, tomados de descompostura.

Brunilde se irritava, mas Eunice via nisso mais do que o despudor, via que os homens eram “senhores do mundo, eles, mesmo os pobres, os mais esculhambados, felizes por exibir seu poder, ainda que fosse esse, o derradeiro trunfo que pode restar a um macho desprovido de tudo o mais, o simulacro de um deus provedor da fertilidade” (p. 153, grifo meu).
Nos homens havia o poder do falo, o simulacro do qual Eunice. O pênis como último trunfo e provedor de fertilidade se compara a sua importância na Grécia antiga, no culto ao deus Dioniso, Baco para os latinos. O falo ereto a desfilar pelas ruas numa alegoria semelhante ao carnaval de hoje, demonstrando o poder masculino do reprodutor, do que guarda em si a semente para a germinação da espécie; mas também o poder do prazer, do sexo. Esse poder tão exibido pelos homens nas ruas da cidade de Nice é o falo dos mendigos, de qualquer macho que tudo podem.

Isso causa em Nice uma mistura de comiseração, irritação e triste reconhecimento, como revolta, de que esses homens dominam o mundo, ao contrário do que é destinado às mulheres: a subserviência, a aceitação de sua condição de cedente aos desejos deles, fechadas numa sociedade que as diminui perante o falo exposto dos machos, seja literal e desavergonhadamente pelas ruas, seja como metáfora da liberdade e poder de seus donos que podem decidir o que fazer de suas vidas e como as viver sem que isso lhes cause qualquer admoestação.

Dessa forma, o texto vai revelando em que posição se encontram homens e mulheres, bem como que prisões lhes cabem: a deles é a necessidade de serem viris, machos dominantes; enquanto a delas, a de serem recatadas, puras, donzelas educadas e contidas, levando-as a praticarem suas “libertinagens” longe das vistas da sociedade.

E Nice sabia bem disso, da dificuldade de realizar seus desejos nesse universo. Porém, ainda tomada pela cultura vigente a que fora submetida desde a infância, criticava-se por essas vontades: “não era certo sentir tantos desejos” (p. 163), dizia, idealizando os homens, sentada numa mesa de bar, sozinha, observando os tipos a desfilarem na sua frente:

para cada visão, para cada homem, surgia uma nova forma de possibilidade deliciosa e de tormento pela impossibilidade concreta. Era fechar os olhos, imaginar. Não adivinhavam o que ela sentia, a perturbação que causavam, o que poderiam conseguir dela, se quisessem? (p. 163-164, grifo meu).
Ela almejava e sofria por não se achar merecedora da febre recíproca desses homens. Cobiçados, ansiados, a eles ela daria tudo por um pouco de toque, de contato, para ser vista e desejada por um momento que fosse. E nessa ânsia por ser possuída e vista, está a representação da mulher frustrada num mundo em que seus anseios não importam.

Frente a essa realidade, ali no bar, em casa ou andando pelas ruas, a solteirona Eunice se torturava pela sua condição, e nesse sofrimento, onde desejava uma vida e possuía outra (ou era possuída por ela), não se reconhecia, parecia viver no corpo de outra. Mulher ausente da carne que habitava, ela não era a figura que via no espelho a lhe devolver o olhar. Eunice não se enxerga; como os homens a enxergariam?

Isso fica claro quando, andando pelas ruas, ao se olhar numa vitrine de loja, desenvolve mentalmente todo o peso de existir como realmente parece ser. A princípio de forma lenta, claudicante, como se desdobrasse lentamente a imagem de si mesma, como se se visse pela primeira vez, aguçando a visão; depois, num só fôlego, aprofundando-se em si e sobre si, desdenhosa do que vê, de sua existência, como se falasse de outra, pois não se enxerga ali representada naquela mulher que tem refletida na vitrine. Aquela mulher que não espelha o que ela sente por dentro, mas que parece ser o que ela é por fora:

Essa mulher loura, comum, com bolsa debaixo do braço, com esses olhos meio espantados, feito uma dona de casa, sensata, propensa a ficar rotunda e sem maior graça que vagasse numa feira ou supermercado como quase matrona escolhendo repolhos e enchendo sacos de plástico com bananas e tomates, tinha algo a ver com a mulher que se envolvera numa aventura imprevisível com um deus? Ah, mas seus olhos valiam. Os olhos. Ele gostaria deles, se olhasse com atenção (p. 192, grifo meu).
O “Ele”, deus, a que se refere é o homem que certa vez viu e sentiu o cheiro na rua, já citado por mim anteriormente. Quanto ao resto, no início da citação grifada está a representação da mulher comum, dona de casa como a sociedade espera; a mulher sem desejos, feita para o lar, sem atrativos, assexuada, tão sexualmente inócua quanto um anjo. Bem diferente do que Nice se imaginava, diante seus desejos, seus sonhos com o homem perseguido e imaginado; daí a pergunta sobre si mesma: seria ela a mesma mulher? E por fim, a esperança de que ele a notasse, e visse nela mais do que ela via na vitrine.

Nice esperava que através dos seus olhos que, na sua perspectiva, seriam mais do que simples olhos, seriam a janela da sua alma, seriam a forma de percebê-la, de enxergá-la realmente na sua plenitude, naquilo que sente ser, enfim, ela esperava que através dos seus olhos ele visse quem ela era de verdade – se a olhasse com atenção (mas o “se” é sempre o perigo, a possibilidade do não, o peso, a incógnita na fé de ser notada).

E essa era Eunice, presa no mundo dos homens, onde estes tinham suas liberdades, seus direitos ao sexo e ao despudor, enquanto ela, tolhida, acuada, vigiada pela família, pela sociedade, tomada de desejos reprimidos, sobrevivia à espera de ser salva por um desses mesmos homens que um dia poderia tirá-la dali; um homem ideal que a faria mulher, que lhe diria safadezas, que lhe daria prazer e, acima de tudo, que a veria como ela se sentia, não como o espelho a refletia.

Mas até lá, até esse príncipe chegar, Nice sofria nessa luta contra seus desejos proibidos, vacilando entre o direito que queria ter e o que a religião, a família e a sociedade diziam que tinha; uma luta que não era só dela, mas de muitas outras mulheres que vivem esse embate entre o pudor opressor e machista e sua vontade de ter a mesma liberdade usufruída pelos homens; obrigando as mulheres a viverem suas fantasias sob as sombras, reféns de homens virulentos e impróprios, ou protegidas em seus pensamentos, longe dos olhares que as vigiam.

Esse mundo é o do romance de Chico Lopes e é o que temos fora dele, é a realidade vivida pelas mulheres também no mundo de hoje, extraliterário. Porém, não só os desejos frustrados femininos e o patriarcalismo da sociedade estão no livro, lá também se encontra a solidão, não somente dessas mulheres oprimidas, mas de todos que compõem o quadro romanceado. Solitários são todos, tanto as mulheres e os velhos que povoam a cidade, viúvos ou não, quanto os homens, mesmo os virulentos, pois são homens que vagam pelas ruas, casados ou solteirões, vadios ou mendigos, também em busca de migalhes de prazer, em segundos furtivos como os corpos que vagam naquela pequena cidade.



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¹ Aqui há uma pequena confusão do autor, ao dizer que o casal foi “lá para trás, para a tampa do porta-malas”. No fusca, o porta-malas é na frente; atrás fica a tampa do motor. Nada demais!




BIBLIOGRAFIA:
LOPES, Chico. Corpos furtivos. Guaratinguetá: Penalux, 2015.



Serviço:
O livro pode ser adquirido no site da Editora Penalux.

2 comentários :

  1. Eis o Chico Lopes safrejando na mesma editora de meu último livro, editora dos camaradas Wilton e Tonho, que um dia lançarão, também, algo - brilhante - de William Leal.

    W. J. Solha

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    Respostas
    1. Hahaha, quem sabe! Obrigado pela leitura, Solha!

      Grande abraço!

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