09/10/2016

outubro 09, 2016

A poesia infantil surgiu no Brasil ainda no final do século XIX, expandindo-se durante os primeiros anos do século XX. Contudo, seu surgimento é atrelado à tarefa educativa da escola, com o intuito de preparar o aluno para ser um futuro cidadão e um indivíduo de bons sentimentos. Além disso, foi, durante muito tempo, usada em recitais obrigatórios nas festividades patrióticas e familiares, o que acabou por torná-la odiada por muitas crianças, que hoje são adultos e ainda detestam poesia.

Por outro lado, atualmente, entende-se que a poesia não deve ser empurrada ao aluno, ou à criança, mas descoberta de forma prazerosa e sem imposições, ato que só prejudica o possível interesse do jovem leitor por essa que é uma porta de abertura a futuras leituras mais extensas e intensas. Afinal, como disse o pesquisador uruguaio Jesualdo Sosa, em A literatura infantil (1944): 

(...) a criança tem uma alma poética. E é essencialmente criadora. Assim, as palavras do poeta, as que procuraram chegar até ela pelos caminhos mais naturais, mesmo sendo os mais profundos em sua síntese, não importa, nunca serão mais bem recebidas em lugar algum do que em sua alma, por ser mais nova, mais virgem. (1993, p. 182)
A especialista em literatura infantil e professora universitária de língua portuguesa, Cristiane Madanêlo de Oliveira, acredita que a poesia possui um potencial simbólico, aliado a sua brevidade que faz dela uma forma mais atraente e lúdica de contato com o texto literário, o que a difere de outras formas literárias. Para a professora,

Há poetas que quase brincam com as palavras, de modo a cativar as crianças que ouvem, ou leem esse tipo de texto. Lidam com toda uma ludicidade verbal, sonora e musical, no jeito como vão juntando as palavras e acabam por tornar a leitura algo muito divertido. Como recursos para despertar o interesse do pequeno leitor, os autores utilizam-se de rimas bem simples e que usem palavras do cotidiano infantil; um ritmo que apresente certa musicalidade ao texto; repetição, para fixação das ideias, e melhor compreensão dentre outros (2005).
É nessa característica de poeta que Ferreira Gullar se encontra com seu livro Um Gato Chamado Gatinho (2000)*. Nele o autor busca apreender a atenção da criança através do engraçado, das palavras e expressões que deem o tom de diversão para o seu neófito leitor. Como ele mesmo diz, numa nota no final do livro, “estes [os poemas] só querem ser engraçados, agradáveis e divertidos”.

Entretanto, essa busca por ludicidade e diversão, não é sinônimo de total liberdade e despreocupação no momento de confeccionar seus versos. Os poemas aqui contidos encontram-se, em quase sua maioria, dispostos sob métrica homogênea, muitos em sete sílabas poéticas, o que não é imprescindível para um livro infantil, mas destaco isso para mostrar o esmero com que o poeta trabalha seus versos.

Somado a isso, tem-se a presença das rimas, que, como foi dito por Cristiane, colaboram com a musicalidade do texto, e uma vasta gama de expressões populares, tais como: “não pago dez” do poema “Companheiro fiel” (p. 25); “é da pesada” do “Regime militar” (p. 27), “lero-lero” do poema “Sem lero–lero” (p. 29), e outras que, em conjunto, dão mais dinamismo e proximidade com a realidade da criança. Porém, nenhuma destas é a característica mais marcante no livro. O que mais aparece no decorrer de suas páginas é o tom divertido que os poemas possuem.

No poema “O Gato Curioso” (p. 9), que abre o livro, o autor faz uma espécie de apresentação de seu bichinho, explicando por que ele tem o nome de Gatinho – segundo diz, “por ser muito engraçadinho” –, e por que é tão curioso; característica que é exemplificada através da narração, em tom jocoso, de um fato típico das proezas de seu gato. Quanto a isso, diz o poema que, certa vez, ao se encontrar consertando a tomada da parede, Gatinho surgiu e “meteu-se, com tanta sede,// a cheirar tudo que – nhoque!/ levou um baita de um choque!”.

O uso da onomatopeia “nhoque” aproxima a criança do verso, por ser uma palavra de uso comum e de sonoridade divertida, bem como, as expressões populares “baita” e “abelhudo” que dificilmente seriam usadas num discurso sério, austero, sendo muito mais corriqueiro numa chacota a alguém.

Portanto, nos poemas de Gullar essas palavras dão o tom da diversão e da simplicidade, corroborando com a graça que se encontra no próprio fato narrado; o que acontece também no poema seguinte, “Gato pensa?” (p. 11), em que o tom de comédia está na atitude do gato que, ao contrário do crido pelos homens, parece ter plena consciência de tudo o que faz: “o Gatinho,/ quando mija na almofada,/ vai depressa se esconder:/ sabe que fez coisa errada”.

Gullar usa, para representar a esperteza do felino, um fato simples e engraçado, bem ao gosto dos prazeres infantis; visto que não seria conveniente fazer uso de alguma demonstração histórica e intelectual de aptidões anormais do bichano, o que acabaria por confundir a cabeça da criança e não alcançar seu intuito de divertir. Além disso, a palavra escolhida para expressar a atividade reprovável e engraçada do gato, é “mija”, e não “urina”, por exemplo, que seria mais “educada”, porém, menos humorística.

Tudo parece ser muito bem pensado pelo poeta. Nada está onde está por acaso ou por pura inspiração. Cada palavra ou verso inteiro é categoricamente justificado quando o poema é lido e compreendido.

Em “O gato é independente” (p.15) a comédia está na última estrofe, que retrata a indignação do gato quando quer ficar sozinho e alguém sempre insiste em lhe procurar. Conta o poeta que, “se alguém se aproxima,/ solta um miado/ de advertência,/ como a dizer:/ Não vem encher/ minha paciência”, demonstrando-se revoltado com a intromissão de alguém que, pelo visto, não sabe respeitar o seu sossego.

Nos dois últimos versos desse poema o autor faz uso de um linguajar bastante cotidiano, o que também humaniza o gato, ele diz “encher minha paciência”, que em outra situação poderia ser o berro de alguém contra outro que lhe incomoda, numa demonstração de revolta, sem graça nenhuma; ao contrário do que temos aqui, uma expressão de humor por tratar-se de um gato, irritado e atrevido, a reclamar privacidade contra seus donos. Um atrevimento semelhante, mas infinitamente inferior ao que ele comente no poema “Peru de natal” (p. 21).

Numa ousadia impar, o gato, Gatinho, cansado de sempre comer a mesma coisa, e não tolerando comida “cafona”, tomou uma estapafúrdia decisão: no “Natal entendeu/ de melhorar seu menu:/ subiu na mesa e mordeu/ nada menos que o peru”.

A ideia de se ver um gato sobre a mesa, agarrado a um peru é, no mínimo, hilariante. Além disso, para corroborar com a situação, as rimas dão o ar necessário de pilhéria e leveza. O poeta consegue transportar a cena para a mente do leitor. É difícil não ver o gato sobre a mesa mordendo o peru, como também não dá para não pensar num gato que considera sua comida “cafona”; uma gíria que vem a calhar para descrever a personalidade um tanto esnobe que parece ter gato. Contudo, é valido dizer que ele recebeu as palmadas que merecia, “mas logo foi perdoado:/ jantou peru de Natal”.

A narração desses fatos, como os dos poemas anteriores, muitas vezes se assemelham a verdadeiros causos. E um dos mais notórios é “A fala do gato” (p.19). Após o poeta afirmar que os gatos possuem uns vinte miados, afirmando que “alguns são suaves,/ outros exaltados;/ há os miados graves/ e há os engasgados”, ele retrata um caso, mais provavelmente um causo, no qual, “em linguagem de gente”, seu gato lhe disse: “‘meu amigo’”,/ assim de repente”. Temos um gato que, não só mia de diversas maneiras, como ainda fala em língua humana.

Isso faz a criança imaginar como seria ouvir um gato lhe dirigir a palavra, algo que, com certeza, assustaria o desavisado. Mas no contexto em que se apresenta é mais fácil fazer o leitor sorrir da impossibilidade.

Porém não para por aí a esperteza e a humanidade deste gato. No poema “Dono do pedaço” (p. 35), ao encontrar o gato da vizinha em seu espaço, enfurece-se e persegue o intruso por toda a casa, até que seu dono aprenda a lição, proibindo “a entrada de gatos;/ só gatas têm permissão”. A expressão “dono do pedaço” é mais uma prova da preocupação do autor em aproximar sua poesia da realidade da criança de forma lúdica e compreensível.

Em “Malentendido” (p.37), poema que já começa tendo como título uma palavra em formato popular, o gato se demonstra com sentimentos tão humanos como nos dois poemas retratados no parágrafo anterior.

Assim como o bicho homem mais autoritário e controlador, Gatinho não tolera que seu dono demore fora de casa, repreendendo-o com miados abusados, sempre que este não reaparece em curto espaço de tempo. No entanto, o mais engraçado do seu comportamento não é propriamente reclamar das demoras, mas sim o fato de que quando ele, Gatinho, encontra-se dormindo, esquece que está deitado aos pés de seu dono e, como o próprio poeta diz, “quando acorda,/ reclama insistentemente/ achando que eu saí/ quando ele é que estava “ausente”” (grifo do autor).

Humano e atrapalhado, suas atitudes são dignas de um filme de comédia para crianças. E um dado importante neste último verso, é o uso da palavra “ausente”, colocada entre parênteses pelo próprio autor, para simbolizar a ausência de consciência, mas não do corpo.

Já em “O gato e a pulga” (p.33) o autor apresenta a relação entre esses dois como uma disputa de forças e inteligência. Os dois seres se comportam como humanos, um querendo afastar o inseto indesejável de si, o outro, insistindo em permanecer no seu hospedeiro.

É engraçado ler a insistência e a destreza da pulga utilizada para retornar ao gato que, após se coçar, conscientemente investiga o chão “para ver se a pulga caiu”, e caso a pulga tenha caído “de fato/– ela nem conta até três –/ dá um salto mortal no ar/ e pula nele outra vez”.

No momento final do poema, a descrição da pulga dando um salto mortal, e voltando ao pelo do gato, é descrita de forma tão expressiva que é quase impossível não ver a pulga saltando. Tudo isso devido à maneira como foram dispostos as palavras e os versos. A rima dá o ritmo necessário para se desenvolver a ação da pulga e a soma disso tudo gera o lado divertido do momento. A linguagem é infantil e o narrador quase pode ser visto nos contando o fato com um sorriso maroto.

Esta representação quase fotográfica de uma situação, ou momento, é também o que acontece em “Na cara” (p.39). A cena nos passa pela cabeça quando o autor diz que o “Gatinho, para me acordar,/ não fica miando a esmo/ mia bem na minha cara/ para ver se eu acordo mesmo”.

Logo é possível ver o gato com as quatro patas sobre o peito de quem narra, miando, insistentemente, sobre sua “cara”. Além disso, com exceção da expressão “a esmo”, que muitas crianças não sabem o que significa, por se tratar da norma culta, o andamento e a linguagem é notoriamente infantil, assim como no próximo poema, “O ron-ron do gatinho” (p. 31), onde, de maneira bem humorada, defende-se os gatos da acusação de que o ronco em seu peito seja causador de alergia. A defesa diz: “o gato é uma maquininha/ que a natureza inventou;/ tem pelo, bigode, unhas/ e dentro tem um motor”.

O andamento é veloz, lembrando uma música de roda, e a ideia de comparar o ronronar do gato a um motor, torna mais fácil a compreensão sobre o que o autor quer transmitir, se levarmos em conta que no mundo moderno de hoje toda criança deve conhecer o barulho de um motor.

Observando todos os detalhes aqui expostos, todos os recursos estilísticos, toda a criatividade usada para conceber essa obra, podemos ver que, seja para defender os gatos das possíveis discriminações sofridas ao longo dos séculos, seja para simplesmente divertir a criança, Gullar consegue o seu intuito. E como colaboração para atingir esse intuito, ele conta com as ilustrações de Angela Lago, que abrem cada poema.

Os desenhos de Angela trazem um maior prazer estético para a criança, o que é notoriamente importante para satisfazer e prender a atenção dos jovenzinhos leitores. Uma parceira perfeita para este poeta que, através de uma poesia bem humorada e adequada ao mundo infantil demonstra toda a sua habilidade em produzir versos maduros o bastante para possuir o tom necessariamente ingênuo do mundo da criança. 




Referências

GULLAR, Ferreira. Um Gato Chamado Gatinho. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000.

OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Estudo das Diversas Modalidades de Textos Infantis [Online]. Disponível em: http://www.graudez.com.br/litinf/textos.htm. Acessado em: 28 de abr. 2005.

SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. Trad. James Amado. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1993.



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