12/10/2016

outubro 12, 2016

Érico Veríssimo foi um dos autores mais lidos no mundo que o Brasil já possuiu, tendo seus livros traduzidos para vários idiomas como alemão, espanhol, finlandês, francês, holandês, húngaro, indonésio, inglês, italiano, japonês, norueguês, polonês, romeno, russo, sueco e tcheco, apesar de alguns por aqui o considerarem apenas um bom contador de histórias.

Contudo, Veríssimo não produziu apenas livros para adultos, ele também investiu na literatura infantil; menos propagada, porém de grande qualidade. Qualidade encontrada nos vários motivos que o escritor utiliza para seduzir os pequenos leitores. E um desses motivos pode ser, como diz Mônica Rodrigues da Costa, o fato de o escritor gaúcho ter o talento de envolver o leitor na trama, além de possuir um estilo “simples, mas encadeado, sem deixar de lado nenhum elo narrativo. (...). O leitor toma conhecimento da história como se alguém lhe contasse intimidades da família”¹. 

No livro O urso com música na barriga (2002)², destinado ao público infantil, as qualidades citadas acima também são facilmente encontradas. Inevitavelmente o leitor se envolverá com a história e se sentirá como um espectador que acompanha toda a trama de perto, de dentro do Bosque Perdido, onde se ambienta a maior parte da fábula.

Esse pequeno livro retrata a aventura de um jovem urso que nasceu com uma característica bastante intrigante: música na barriga. Não falava, não chorava nem sorria, apenas soava música para expressar todas as suas emoções.

Érico Veríssimo começa retratando o Bosque Perdido e seus habitantes curiosos. Este início funciona como um primeiro capítulo do livro. Nele o autor nos apresenta as características de seus personagens, previamente retratadas nos seus próprios nomes, ou seja, os nomes atribuídos aos moradores do Bosque dizem respeito as suas qualidades como “indivíduos”. Por exemplo, o Lagarto-preguiçoso “passa o dia deitado, meio dormindo” (p. 4). Este lagarto, como o próprio nome já insinua, não gosta de trabalhar: “de dia, toma sol; de noite, toma lua; e quando chove, toma chuva” (p. 4).

Outro bicho curioso é o Vagalume-Faceiro que passa o dia se preparando para o passeio que faz todas as noites. Este é tão faceiro que engraxa suas botinas, passa sua roupa a ferro, bota gasolina no seu motorzinho que fica na barriga e quando chega a noite sai de casa a passear pelo Bosque Perdido. Mas não é somente de passeio que ele vive, quando falta luz no cinema que frequenta ascende sua luzinha e fica muito risonho, iluminando o salão, enquanto as borboletas batem palmas.

E como não poderia faltar, há também o moleque da turma. O Macaco-Patusco, em pleno acordo com seu nome é o responsável por inúmeras molecagens no Bosque: “sabe contar muitas histórias e sempre anda inventando brincadeiras para incomodar o Tucano-Narigão” (p. 5), do qual a alcunha já é autoexplicativa, “parece um homem narigudo” (p. 5-6), diz o narrador.

Muitos outros personagens seguem essa mesma linha de raciocínio: nomes que trazem um significado especial dirigido as suas personalidades ou aparências. Entre os que ainda não citei acima há a Lagoa-Espelho, Dona Anta-Gorda, o Jacaré Deixa-Estar (lento e caduco), a Abelha-Trabalhadora — “uma moça que passa o dia trabalhando” (p. 12) —, o Lagarto-Preguiçoso que espera que os outros trabalhem por ele – talvez por isso viva pensando: “Ai que bom se eu me tivesse casado com a Abelha-Trabalhadora” — e muitos outros, além do próprio Urso-com-Música-na-Barriga.

Contudo, o fato de os personagens dessa história possuírem nomes que lhes representam as qualidades e fisionomias, o que mais chama a atenção nessa história é que essas qualidades representadas são características tipicamente humanas. Todos os personagens aparecem personificados. Suas atitudes são diretamente ligadas à forma como agem os humanos. E isso já pode ser visto ainda no início da história quando se apresenta o filhote de rio que “passa a vida cantando uma canção tão bonita, que os jacarés chegam a chorar de alegria” (p. 3). Jacarés chorando como os humanos?

Mais à frente encontramos esquilos que brincam de esconde-esconde (p. 3), os filhos do Lagarto-Preguiçoso que se preocupam com o fato de seu pai não trabalhar — e por isso vivem pensando: “onde é que ele vai arranjar dinheiro para nos comprar brinquedos quando o Natal chegar” (p. 4) —, o Vaga-Lume-Faceiro que vai ao cinema, as borboletas, o Macaco-Patusco dono de um mercadinho, o Tucano-Narigão poeta que sofre as chacotas típicas de um ser humano frágil, vítima de brincadeiras de mau-gosto, como no caso descrito no livro em que o Tucano se encontra declamando um de seus poemas durante um baile no Bosque e o Macaco-Patusco grita detrás de uma cortina: “— Não vai cair de cima desse nariz!” (p. 8), produzindo risada geral.

Claro! Há também os vaidosos como a Garça-Neve que gasta todo o seu dinheiro estudando poses no espelho d’água da Lagoa Espelho que “cobra um tostão a quem quiser se olhar nela” (p. 10). Mostra de uma boa comerciante no Bosque.

Mas nessa lagoa mora outro bicho bastante curioso, o Jacaré-Deixa-Estar, que como um bom humano vai ao dentista, mantendo uma enorme conta por lá. No entanto, o dentista, que é o Veado-Manco, “tem medo de pedir dinheiro ao freguês” (p.11), como normalmente acontece na relação do mais fraco com o mais forte. Situação perigosa!

Já numa outra direção, se encontra também a soberba, presente no Bosque Perdido. O Marandová-Veludo veste-se com uma roupa toda de veludo, sendo o mais bem vestido da região, além de viver dizendo por aí: “Eu me visto no melhor alfaiate do Bosque Perdido” (p. 12). Por outro lado há também o espírito altruísta: a Abelha-Trabalhadora sempre distribui mel as suas amigas, aos seus afilhados e aos filhos dos vizinhos, numa verdadeira mostra de bondade e amizade.

E para completar esse quadro humano desses animais existe ainda o Sapo-Boi que vive muito triste com a sua gordura, por isso faz regime para emagrecer e ginástica sueca todas as manhãs. Mas não podemos esquecer a curiosa Vaca-Amarela que vende leite pasteurizado para a freguesia. Leite pasteurizado?!

Após as apresentações dos personagens do Bosque é a vez de aparecer o personagem que dá nome à história: o Urso-com-Música-na-Barriga. Seu nascimento se deu graças à pirraça de seu irmão, Urso-Maluco, que ao saber que sua mãe queria uma filhinha, por pura piada, o maluco encomendou à cegonha, contrariando sua mãe, um irmãozinho com música na barriga; achando que seria uma brincadeira bastante divertida. A cegonha, como boa cumpridora de seus deveres, atendeu ao pedido, e um garoto musical veio para espanto geral de todos, transformando a vida calma da família em uma grande agitação com reportagens e fotos em todos os jornais da localidade. Uma verdadeira sensação.

Dentre as várias mostras de humanidade nos bichos dessa história há um fato bastante curioso e intrinsecamente ligado ao mundo infantil de gerações passadas: o fato das crianças serem entregues pela cegonha. O autor resolveu dar aos seus leitores a visão ingênua e infantil do nascimento, tornando o texto mais lúdico e divertido.

Nessa segunda parte da história saímos dos bosque e acompanhamos o Urso-com-Música-na-Barriga nas aventuras que irá viver fora dali, ocasionadas pelo seu irmão encrenqueiro, culpado por lhe fazer cair nas mãos de humanos que vão tratar seu irmão como um bichinho de pelúcia — infelizmente na casa de uma criança que tem mania de desmontar seus brinquedos.

Outro momento “humano” no Bosque é a festa de comemoração do nascimento do ursinho. Festa realizada com muita música. Mas quem são os músicos? Os animais, claro! O Sapo-boi tocava contrabaixo, a Vaca-Amarela tocava piano, o Tamanduá-Bandeira soprava no saxofone, a Raposa tocava violino, o Jacaré-Deixa-Estar tocava flautim, o Macaco-Patusco tocava bateria, o lagarto, violão, e a Onça-Pintada, banjo.

Esses detalhes da construção da obra mostram que toda a história é ambientada dentro de um mundo mais compreensível para a criança, um mundo que esteja bem próximo do mundo que ela conhece e imagina, um mundo que mexe com as suas fantasias, estimulando sua criatividade em meio aos animais que falam e agem como humanos, bastante semelhantes aos que o jovem leitor conhece; ou seja, personificando os animais da floresta Érico Veríssimo encontrou uma forma de mostrar algumas das características mais marcantes da personalidade humana como o orgulho, a vaidade, o caráter duvidoso, a delicadeza, entre outros. Assim, o tenro e iniciante leitor toma conhecimento do mundo que o cerca sem chocar-se bruscamente com a realidade em que vive.

Por fim, podemos dizer que o livro também mostra a importância das relações afetivas, bem como a necessidade de se ter responsabilidade naquilo que faz; usando como exemplo o Urso-Maluco que, irresponsavelmente, sem pensar nas consequências de seus atos, colocou a vida de seu irmão em perigo através de uma brincadeira de mau gosto.



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¹ Artigo escrito para a revista literária Entre Livros, Ano I, nº 1, de 2005. Mônica Rodrigues da Costa, autora do artigo, é poetiza e doutora em comunicação e semiótica. 

² VERRÍSSIMO, Érico. O urso com música na barriga. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002. (Livro escrito originalmente em 1938).



Imagem: Capa do livro O urso com música na barriga.

Como sempre peço, mesmo não sendo atendido, mas insisto, se gostarem da indicação, curtam a página do texto, compartilhem e propagem a Literatura; é de pequeno que se aprende o valor de um bom livro. Não sejam apenas inócuos expectadores, contribuam para um mundo com mais leitores. Andamos muito analfabetos-funcionais ultimamente.

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