07/07/2015

julho 07, 2015
2
Nos tempos modernos, dentre muitas coisas, uma tem se tornado bastante evidente: a solidão. Não necessariamente a solidão no seu sentido mais tradicional, quando alguém se encontra só, apartado do mundo, distante fisicamente de tudo a sua volta. A solidão moderna se dá em meio a multidões. A proximidade que o outro ou os outros estão de nós não dá a medida correta do grau de compartilhamento de vida ou mesmo de presença. 

A solidão que é sentida hoje está dentro de cada um. Sozinho no seu quarto ou rodeado por pessoas, numa festa, numa reunião, num bar, em família, a solidão é uma sombra quase sólida a acompanhar os passos e, sobretudo, o pensamento daquele que a sente e percebe que, estando só, na verdade está acompanhado por ela, a solidão. 

Fernando Pessoa sabia disso – pelo menos seus heterônimos sabiam. E muitos de seus poemas se referiam ao tema. Por isso escolhi um deles, datado de 9 de agosto de 1931, que é parte de seu espólio, portanto menos conhecido, para esboçar esse sentimento do poeta e nosso nos dias de hoje; o que também mostra, por sua vez, que não é de agora que assim nos sentimos, se levarmos em conta a famosa frase de Roland Barthes ao afirmar em sua aula inaugural que o poeta é a antena do mundo, assim nos revelando aquilo que ele captou de nós mesmos. Portanto, observamos que já no início do século passado o poeta Pessoa captava esse sentimento de solidão no meio de multidões. 

Enfim, vamos ao poema: 

Quando estou só reconheço 
Se por momentos me esqueço 
Que existo entre outros que são 
Como eu sós, salvo que estão 
Alheados desde o começo. 

E se sinto quanto estou 
Verdadeiramente só, 
Sinto-me livre mas triste. 
Vou livre para onde vou, 
Mas onde vou nada existe. 

Creio contudo que a vida 
Devidamente entendida 
É toda assim, toda assim. 
Por isso passo por mim 
Como por coisa esquecida. 

No início da primeira estrofe, Fernando Pessoa declara que a solidão é uma forma de se autoenxergar no mundo: “Quando estou só reconheço/ Se por momentos me esqueço/ Que existo entre outros que são/ Como eu sós,...”. 

Existir entre outros aqui não é sinônimo de companhia, de viver em grupo; no poema se trata apenas de existir no meio de outros, cada um na sua solidão e isolamento, o que dá o toque da contradição entre a vida no meio de outros e ainda assim ser só. 

Porém, nem todos percebem esse sentimento. Ainda no quarto verso, o termo “salvo” é usado como maneira de afirmar que há quem não compartilham do mesmo conhecimento. Diz o verso: “salvo que estão/ Alheados desde o começo”. 

O uso de “salvo” poderia aqui significar também, além do significado trivial na frase, que os que vivem alheados da solidão, estão salvos dessa dor por não perceberem isso. Mas como “salvo” encontra-se no singular[i], podemos crer que se trata apenas de uma preposição como “exceto”, ou seja, refazendo parte do verso, “existo entre outros que são/ como eu sós, exceto os que estão alheios a isso desde sempre”.

Diferente desses alheados, o personagem de Pessoa tem consciência da solidão em que se encontra, e de que outros não possuem essa mesma consciência – “alheados” dá a certeza do afastamento dos outros da verdade. Se estar alheado e, portanto, não sentir os efeitos dessa solidão é bom ou ruim para esses outros, o poema não declara nitidamente; contudo, pelo andamento do poema e pelo tom do poeta, podemos supor que sentir, perceber essa solidão não é algo agradável e desejável.

Continuando, e corroborando com o que eu disse acima, a estrofe seguinte dá o tom desse doloroso conhecimento da solidão: “E se sinto quanto estou/ Verdadeiramente só,/ Sinto-me livre mas triste”.

Nesse momento, encontramos duas medidas distintas, mas intimamente ligadas no que diz respeito ao sentimento da solidão. A solidão tem um preço, assim como a liberdade que ela pode trazer. O preço é o sentimento de solidão; e a liberdade custa a solidão.

O uso da adversativa “mas”, sem vírgula anterior, diz que estar triste não é necessariamente algo contrário a estar livre, mas uma soma, um aditivo a isso; estar livre é também estar triste, quando se trata de solidão. Caso o “mas” quisesse significar algo contrário a esse sentimento diria: “felizmente livre, mas triste por isso”. O “mas” estaria precedido de vírgula (como ocorre no próximo verso). Portanto, assim como ele se encontra, funciona como adição, como um “e”, fazendo da liberdade e da tristeza consequências da solidão.

Na estrofe seguinte, a liberdade ainda respira, ainda está presente, porém leva o liberto ao vazio: “Vou livre para onde vou,/ Mas onde vou nada existe”. Sua solidão leva consigo o nada; ser só é levar o vazio ao lado. Para o solitário nada existe onde ele se encontra, não importa o que há ao seu redor, nada há verdadeiramente quando se sente só.

Crendo nisso, podemos entender que a tristeza está dentro da personagem e não na ausência de companhia propriamente, como já sugeri na introdução desse ensaio. O eu lírico do poema não está só, ele é só. E de que vale a liberdade se não há com quem compartilhar? Assim, podemos supor que uma completa liberdade é um nada existir, pois só onde “nada existe” há total liberdade. Daí a tristeza que a liberdade provoca, citada na estrofe anterior.

Contudo, diante disso, desse conhecimento de solidão e liberdade atreladas, e suas consequências, tem-se outro conhecimento, mais expressivamente do mundo do que de si mesmo, o que talvez possamos chamar também de conformidade, de aceitação. Como se ao analisar o mundo ao seu redor e aqueles que ali vivem, percebesse que o sentimento que nele se faz presente, essa solidão, liberdade e tristeza não é unicamente seu, se outro, assim como ele, também toma consciência da solidão. Assim diz ele: “Creio contudo que a vida/ Devidamente entendida/ É toda assim, toda assim”. Portanto, todo aquele que toma consciência sofre das mesmas dores que o eu lírico de Fernando Pessoa.

Essa afirmação/descoberta do eu lírico assemelha-se ao que diz o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) em seu livro “Ser e Tempo” (1927), quando afirma que estar só é a condição original de todo ser humano. Que cada um de nós é só no mundo. E esse estar só, na concepção do eu lírico de Pessoa, é também condição de liberdade que tem como preço a tristeza, que num ciclo vicioso acarreta a solidão que provoca essa tristeza.

Diante disso, podemos perceber que toda essa sorte parece dolorosa ao eu lírico que passa por si mesmo como por outro: “Por isso passo por mim/ Como por coisa esquecida”.

Talvez, como toda vida é solidão e estamos todos, afinal, verdadeiramente sós, o eu lírico do poema encontra-se tão só que como outro de si passa por si mesmo e não se percebe. A solidão é tanta que há uma ausência de si mesmo, um não se reconhecer, pois se esquece de si. Tão só ele se encontra que não figura na própria lembrança que exista. Tão grande é a solidão que não se apercebe de si, não se sente existir, logo, verdadeiramente, não existe para si mesmo.

Porém, se levarmos essa explicação em conta, temos uma contradição na figura de alguém que ao mesmo tempo em que toma conhecimento da sua solidão, não se percebe existir, como se percebesse não a solidão em si mesmo, mas noutro.

Entretanto, cabe aqui ainda outra interpretação (cabem muitas outras, talvez). Seria possível que esse passar por si “como por coisa esquecida” seja não acidental ou inconsequente, mas proposital, algo imposto a si mesmo para não perceber que está só, para se proteger, não tomando consciência da solidão que lhe abraça, e assim evitar a tristeza.

Essa interpretação poderia se justificar pelo uso do “Por isso” no início da estrofe, com se dissesse que devido a todo o sofrimento que ele poderia sentir com a percepção da solidão, prefere não se perceber, viver como outro de si, afastando-se de si mesmo – “[...] passo por mim/ como por coisa esquecida”. Afinal, quem sofrerá se não se permitir a autoconsciência de sua presença no mundo? Para menos sofrer, troca-se a autoconsciência pela autopreservação.

Enfim, são duas possibilidades interpretativas para o mesmo final, e/ou duas saídas para o mesmo fim: a integridade do seu espírito. E não podemos esquecer que isso também seria outra forma de liberdade; não uma liberdade como a dada pela solidão, aquela que o livra da presença maçante ou perniciosa do mundo e lhe permite o autoconhecimento, mas a liberdade da dor, a liberdade do peso da existência, porém, de si mesmo.

Nesse panorama, no poema de Fernando Pessoa, solidão, liberdade e tristeza estão atreladas como faces de um triângulo nada amoroso, salvo aceitarmos a liberdade como forma de afastar-se de si mesmo para se ver livre do sentir o mundo.

E para construir esse entendimento, a confecção da poesia se dá de forma gradual. Primeiro se apresenta a condição de estar só e a percepção que isso dá de si e do mundo, o autoconhecimento; depois o poeta parte para a possibilidade do alheamento como forma de afastar-se da consciência da solidão; então apresenta a condição de liberdade que a solidão pode trazer e sua consequência, a tristeza por se ver isolado, vazio, sozinho; para daí expor uma consciência de que o mundo todo sofre do mesmo mal, e talvez por isso, por estar tão imerso na solidão, não se perceba, seja outro de si mesmo, se esqueça que existe, solitário de si; ou ainda, como sugeri, busque esse afastamento de si mesmo, fugindo da autoconsciência para não sofrer, uma autopreservação da dor, de todo o sofrimento e, portanto, da própria solidão. Assim o poema seria uma espécie de descrição da forma como prefere viver para não ser vítima da consciência da solidão e de seus males. O que começou como consciência da solidão, termina como fórmula de liberdade desse fardo.




Referência bibliográfica

PESSOA, Fernando. Novas Poesias Inéditas. 4ª ed. Lisboa: Ática, 1973. p. 67.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcanti Schuback. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2009.



_______________
[i] Para referir-se aos outros que comentamos aqui, a palavra deveria estar no plural, concordando em número com os indicados, deixando de ser preposição para se apresentar como adjetivo

2 comentários :

  1. Um belo poema com oportuno foco de luz sobre ele, em sua dissecação.

    W. J. Solha

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pela leitura e comentário, Solha!

    ResponderExcluir

Voltar ao topo