22/10/2009

outubro 22, 2009
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Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda.
(Cecília Meireles, O Romanceiro da Inconfidência)


Era final de tarde. Sozinho no meu canto mais seguro de mundo, eu regava as plantas do meu quintal. Nunca encontrei nada mais seguro que regar minhas flores, elas me escutam e eu as faço felizes com um pouco de água, são humildes, pedem pouco para me suportar. Enfim, eu estava lá, absorto na perfeição do silêncio, quando ele me apareceu como num flash: não estava lá, de repente estava. Ali estava ele, com os pés plantados no chão, a um metro e meio de mim, com a cabeça inclinada para o lado, me olhando com um olho só. Surpreso em vê-lo ali, tão perto, fato incomum entre os voadores, admirei-o, também de lado, com um olho só, mas meio encabulado. Era a primeira vez que um deles se aproximava tanto de mim, e o fato de me olhar daquela maneira direta, me deixou incomodado. Não tanto quanto o assombro que senti quando ele me dirigiu a palavra:

― E aí, rapaz, tudo bem?

(Silêncio)

― Ô rapaz, estou falando com você!

(Silêncio)

Enquanto meus olhos moviam-se convulsivamente para todos os lados, eu não encontrava forma de fechar a boca e articular alguma sílaba que fosse.

― O que é que há com você, meu camarada, é tímido ou idiota? Quem sabe mudo?!

― Você está falando comigo? ― consegui tremular essas palavras que, na verdade, não saíram da minha boca; caíram.

― Claro! Está vendo mais alguém aqui?

― Não, não estou. É que... É que estou... É que não consigo acreditar. Nunca um de vocês falou comigo antes.

― O que você quer dizer com um de vocês? Por acaso você não conversa com pardais? Tem algo contra nós? Prefere os bem-te-vis, as araras, os papagaios imorais ou alguma outra dessas aves ornamentais metidas?

― Não, não é isso, eu quis dizer que nunca um pássaro falou comigo.

― Ah, está bem, entendo, nós pássaros somos meio temerosos dos humanos, ahahahaha, até mesmo esses exibidos que falei agora, na verdade, são temerosos; vocês não são muito gentis conosco. Sabe como é.

― É verdade ― respondi com os olhos incrédulos do feio que foi beijado pela rainha do baile; o que ele percebeu.

― Está tudo bem com você, rapaz? Estou te achando meio esquisito.

― Estou bem, estou bem, é que você me pegou desprevenido.

― Sei, sei, peguei você com as calças nas mãos, como vocês dizem, ahahahaha. Mas, se quiser, posso ir embora e deixar você aí com suas flores.

― Não, pode ficar, fique, por favor!

― Certo, certo. Eu perguntei por que não gosto de incomodar ninguém, não sou esses pombos estúpidos que ficam por aí fazendo suas necessidades em qualquer lugar, sujando tudo e ainda sendo alimentados pelos humanos com migalhas de pão; isso é muito triste. E por falar em alimentar, você não teria aí um pãozinho pra mim?

― Mas você acabou de reclamar dos pombos...

― Você se apega a cada detalhe! Tem ou não um pãozinho pra mim?

― Tenho sim, vou pegar para o senhor.

― Senhor, não! Eu pareço velho pra você? Minhas penas estão desbotando? Meu bico está flácido? Minhas
pernas estão tremendo? Faça-me o favor!

― Não! Falei apenas por respeito.

― Certo, mas me trate por você.

― Ok, como quiser. Vou pegar seu pão.

― Está bem! Eu aguardo.

Mas que diabos eu comi no almoço? eu me perguntava, enquanto caminhava em direção à cozinha e minhas pernas dançavam o samba do crioulo doido. Não é possível, nada me tira da cabeça que alguma coisa alucinógena está me afetando; quem sabe aquele arroz meio esquisito, de cor estranha. Tenho que me lembrar de nunca mais comprar essa marca. Ou será que bati com a cabeça e não me lembro? Era tudo o que eu não precisava, enlouquecer antes de ser feliz. Que tipo de maluco acredita que conversa com pássaros? Qual seria meu próximo passo, conversar com as lagartixas sobre o porquê de elas sempre concordarem com tudo?

Apesar do assombro de Dr. Dolittle, consegui fingir ter uma mente saudável, pegar o pão e voltar ao pardal.

― Pronto! Aqui está, pode comer.

― O que é isso, ficou maluco? ― gritou abrindo as asas como se estivesse se preparando para me esbofetear a cara. Sua voz aguda tornava-se quase insuportável quando esbravejava; escavava meu tímpano feito uma agulha.

― O que foi, você não pediu pão?

― Sim, mas como você quer que eu coma um pão desse tamanho? Eu sou um pássaro, não um crocodilo. Preciso que você o esmigalhe pra mim.

― Tudo bem, tudo bem, me desculpe, vou fazer isso já (não acredito que estou mesmo falando com um pássaro, sussurrei para o outro eu são que ainda devia estar dentro de mim).

― Assim está melhor ― disse com um sorriso matreiro (um sorriso matreiro? De um pássaro? Quanta loucura!).

Depois que esmigalhei o pão, não pude me furtar de observar a rapidez e a precisão com que aquela coisinha pequena bicava os farelos no chão, possuía a destreza e a agilidade de um... de um... de um pássaro, claro! E naquele mesmo momento surreal, eu me peguei imaginado como seria bom voar, conhecer o mundo, está acima de tudo e de todos, pousar sobre um fio de dezenas de mil volts e, não só, não morrer eletrocutado como poder ficar lá observando a barafunda da rua, os sorrisos e gritos dos daqui de baixo, a beleza da vida que se movimenta sem cessar e a feiúra dos esgotos humanos que se escondem nos becos mais sombrios e furtivos – eu sei, isso não era hora de pensar em feiúras; mas fazer o quê, não pude evitar. Enfim, seria bom voar como um pássaro que namora o vento e não se engarrafa com as máquinas velozes aqui de baixo. Como seria, mas não era, por que durante aqueles poucos segundos em que sonhava fui despertado pelo pequenino que me trouxe de volta à realidade com uma leve bicada no meu pé descalço.

― O que você está pensando aí, rapaz?

― Eu estava só imaginando como deve ser bom voar.

― É sim, é maravilhoso poder ser livre, dar uns rasantes, se empoleirar numas árvores, nuns fios elétricos sem se eletrocutar; é maravilhoso, o que estraga é a sua raça, vocês, humanos invejosos de nossa liberdade.

― Nós?! Mas por quê?

― Ora, vocês parecem odiar nossa liberdade, sempre querem nos aprisionar como se fôssemos bibelôs sem sentimentos; é só um de nós darmos sopa que lá vem um alçapão desgraçado nos abocanhando, e pouco depois nosso mundo se transforma numa gaiola. Nós sofremos com isso, sabia? Eu quero ser livre, eu quero fazer aquilo que nasci para fazer, eu quero voar sem ter que me preocupar se algum humano egoísta não vai me privar disso para o seu bel prazer.

― É... Eu imagino. É muito cruel o que fazem com vocês. Você tem razão. Inclusive, certa vez, um dos nossos pensadores, um sábio homem chamado Spinoza disse que “ser livre é fazer o que segue necessariamente da natureza do agente”, ou seja, é aquilo que você acaba de me dizer, ser livre é fazer aquilo que a sua natureza lhe destinou para fazer. Ninguém tem o direito de tirar isso do outro... ― nesse momento parei de falar e, em silêncio, me percebi ridículo: não acredito que estou citando Spinoza a um pássaro, que estupidez!

― Pois é! ― ele continuou, sem dar bola para minha cada de idiota. ― Eu queria ver se esses bandidos iriam gostar de ficar anos e anos presos numa gaiola, sem direito a sair, brincar com os amigos, viajar, ser livre. Afinal por que acham que têm o direito de nos aprisionar? Por que eles acham que têm mais direito do que eu de ser livre?

(Nesse momento, suas penas se agitavam como os braços de um italiano nervoso).

― É verdade ― corroborei.

― Isso é coisa de gente estúpida: não aceitariam ser presos, mas prendem os pássaros. Se não gostam de ficar engaiolados, não sei por que engaiolam a gente.

― Você tem razão.

― Eu sei que tenho. Agora me dá licença ― disse e se dirigiu em minha direção, sem a menor cerimônia ou preocupação; tenho certeza que, se não fosse tão pequeno, passaria por cima de mim como o verdadeiro senhor do meu quintal.

― O que foi? ― perguntei.

― Eu quero beber um pouco dessa água aí do lado do seu pé; essa poça aí ― e me apontou com a asa direita uma pequena poça d’água que, levemente, ondulava ao sabor do vento, junto ao pé do meu roseiral.

― Ah, claro! Tudo bem!

― Estou meio entalado com esse pão ― me explicou ― e preciso beber um pouco de água, antes que eu comece a perder a voz.

― Fique à vontade!

― Ahhhh, água boa, tá tá tá tá. Eu precisava disso.

Por alguns instantes, ele se esqueceu de mim e se ocupou apenas de sua água. Seus movimentos pareciam com o daquelas armações gigantescas de petróleo usadas para perfurar o solo em busca do ouro negro, baixando e levantando a cabeça continuamente, para sorver o líquido do chão. E como o silêncio já me incomodava, resolvi, mesmo desajeitadamente, reiniciar uma conversa com ele:

― Você voa sempre por aqui ― perguntei com um sorriso de canto de boca, como um adolescente que não sabe o que dizer a menina linda a quem acaba de ser apresentado no aniversário de alguém.

― Sim, vôo ― me respondeu borbulhando as palavras, enquanto mergulhava o bico na poça d’água. ― E você, cultiva flores?

― Só essas aqui. Gosto de tê-las no meu quintal, embelezam o ambiente.

― Embelezam o ambiente... Parece coisa de bichinha, ahahahaha ― me soltou essa com um sorriso largo que jamais imaginei ver sair de uma boca, digo, de um bico, algum dia.

― Não sabia que você tinha senso de humor ― respondi (Palhaço! pensei).

― E por que não teria, acha que todo pássaro é estúpido? É claro que eu tenho senso de humor, o que você acha que nós pássaros fazemos quando não estamos voando? Nós conversamos, uns com os outros, brincamos, contamos piadas, dançamos valsas ― e mexeu as pernas curtas feito um bêbado que teimava em não cair.

― E isso é uma valsa? ― perguntei tentando controlar o sorriso que explodia, por medo de sofrer umas bicadas insuportáveis nos meus pés.

― O que foi? É que eu estou meio enferrujado ― me respondeu contrariado. ― Mas você tá pensando o quê? Todos nós dançamos. Somos exímios dançarinos. Você nunca percebeu a semelhança entre os passos de uma valsa e os movimentos dos pássaros num vôo? São iguais, rapaz, a valsa foi inspirada em nós, nós somos os verdadeiros idealizadores da valsa. Mas hoje eu estou meio mal, andei doente esses últimos dias e não posso dançar direito, mas logo logo volto a ter vento nas pernas.

― Sei, sei.

― O que foi, tá duvidando de mim? Não debocha de mim não que eu te dou uma bicada nas fuças, rapaz. Tá pensando que tamanho é documento?!

― Desculpe ― respondi após dar um passo para trás ―, eu não queria debochar de você, é que eu não sabia que pássaros dançavam, muito menos que a valsa era inspirada em vocês.

― Você não sabe de muitas coisas, hein?! ― disse balançando a cabeça com ar de desdém. E olhando para o lado sussurrou: ― Humanos, sempre achando que são os únicos no mundo que sabem se divertir.

― Eu não penso assim, eu acredito que todos merecem viver.

― Você deve mesmo achar que os pássaros são estúpidos... ― continuou sem dar a menor bola para a minha defesa, e seguiu falando sozinho como orador maluco. Parecia um palestrante italiano revoltado, gesticulando com as asas, apontando para o céu, para o chão, abrindo e fechando o bico feito uma matraca desgovernada. Eu quase não entendia o que dizia para si mesmo, mas, já no final de seu monólogo, o ouvi voltar ao assunto que havíamos abordado há alguns minutos atrás: ― Tenho certeza que você deve ter alguma gaiola escondida por aí, com algum colega meu lhe servindo de decoração para a casa.

― Claro que não! Eu já deixei claro que não concordo com o aprisionamento de pássaros.

― Sei, sei.

― Falo a verdade!

― Tudo bem, rapaz, vamos esquecer isso. Eu acredito em você.

― Então por que disse aquilo?

― Só para desopilar. Precisava botar para fora a raiva que às vezes sinto dos humanos. Sabe o que mais me impressiona em vocês? É a capacidade que têm de serem escravos; talvez por isso queiram aprisionar a tudo e a vocês mesmos. Estão sempre criando máquinas que se obrigam saber utilizá-las, mesmo que não tenham uma real necessidade delas, criam seus carros, criam suas geringonças, criam seus mitos e crenças e acabam se tornando escravos de tudo o que criaram. Por que se enjaulam tanto? Por que não sabem ser livres com nós? Não precisam de asas para ser livres, precisam de desprendimento, precisam sentir o vento que todos os dias toca os seus rostos e aprender com ele que quando lhe obstruem o caminho, ele logo encontra outra saída, mas nunca se deixa prender, nunca se deixa governar pelos desejos de outros, pela imposições das formas ou modismos. Eu acredito, rapaz, que o destino de todo ser vivo é a liberdade, mesmo o de vocês que são tão incompetentes para ela.

― Isso foi bonito!

― Obrigado!

― Bonito mesmo. Você falou igual a um grande poeta que tivemos no meu país, ele se chamava Vinícius de Moraes, e certa vez disse que “o destino dos homens é a liberdade”.

― E ele tinha razão, é o destino de vocês, e é o nosso também, mas vocês atalham a sua liberdade e aniquilam a nossa e de vários outros seres que não respeitam; são egoístas, são egocêntricos. Já não é o bastante se escravizarem em nome de seus bens, de suas posições sociais, de sorrisos e falsas ideologias, ainda querem nos usar como presentes e objetos para decoração de suas vidas vazias?! Vocês têm muito que aprender conosco, os verdadeiros membros da liberdade, nós que ...

E continuou falando, falando e gesticulando aos quatro ventos como se palestrasse para um auditório ávido por sua sabedoria. Eu não sei onde e como um pássaro adquiriu tanta filosofia. Mas sei que, enquanto ele falava, me veio à lembrança uma citação de Rousseau que há muito tempo não ruminava, desde os tempos de faculdade, quando um professor nos obrigava a decorar algumas máximas de pensadores para recitarmos e comentarmos na sua aula, como prova de nossa capacidade de interpretação e apreço pelas ciências humanas, que ele, nosso professor, julgava indispensável para a formação do ser humano (hoje concordo com ele); enfim, as palavras de Rousseau eram as seguintes: “O cidadão, ao contrário [do homem selvagem], sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la”. Será que o pardal já havia lido o mestre francês e o seu “Discurso sobre a desigualdade”? Claro que não! Quer dizer... Quem sabe?! Loucura? Eu sei. Contudo, o importante é que senti vergonha, diante aquela criatura tão pequenina, por nosso orgulho, por nossas prisões, por nosso desprezo por tudo aquilo que não concordava com nossa forma arbitrária e megalomaníaca de gerir o mundo. Nós, servos de nossa própria criação, bajuladores, servis de homens que, muitas vezes são tão pequenos que temos que fazer um grande esforço para não os sublimarmos e acabarmos por perder alguma hipócrita ascensão; e tudo isso para fugirmos de nossa liberdade. É, me empolguei um pouco. Na verdade, eu já sonhava com revoluções, lado a lado com o pardal, numa luta pelos direitos de liberdade. Porém, em meio a essa auto-pregação mental que me dominava, onde já me tornara professor e aluno, e esqueci que havia outro palestrante diante meus pés. Mas acordei de mim mesmo ainda a tempo de ouvi-lo dizer:

―E por isso estamos aqui, nos escondendo de vocês, brutamontes sem coração, invejosos de nossas asas...

― Acredito que você já disse isso ― não pude resistir, tive que interrompê-lo.

―E daí?! ― rasgou-me outra vez os tímpanos com sua voz argentina. ― Vale sempre à pena repetir uma boa frase.

― Todos os pardais são assim animados como você?

― Não, mas nenhum é lerdo assim como você, ahahahaha.
Era incrível a capacidade que ele possuía de mudar de humor, chegava à beira do comportamento inconsequente.

― Você é mesmo muito engraçado.

― E sou mesmo ― respondeu prontamente com a animação de um hiperativo; não lhe restava mais o menor resquício da irritação de há pouco. E continuou, sem perder a piada: ― Já você é um mama-na-égua com cara de bundão, ahahahaha!

― O que é isso? Também não precisa xingar.

― Relaxa, relaxa e goza, eu estou só mexendo com você, rapaz, sossega.

― Desculpe, é que eu ando meio estressado ultimamente, tenho muita coisa na cabeça.

― É galhada?! Ahahahaha. Entendeu? Galhada, chifre, ahahahaha. Eu não podia perder essa, ahahahaha... Deixa pra lá, você não tem senso de humor mesmo.

― Eu entendi a sua brincadeira “espirituosa”. Não é chifre, não tem nada a ver com mulher, é trabalho.

― Sei, sei. Mas você tem que aprender a relaxar, deixar as coisas rolarem, se divertir, pegar umas pardalzinhas, quer dizer, umas gatinhas; aliás, que negócio é esse de gatinhas que vocês falam, é porque acham suas mulheres parecidas com gatos ou são chegados a um pêlo mesmo?

― É apenas uma forma carinhosa de se referir às mulheres, isso quer dizer que elas são bonitas, manhosas, macias...

― Sei, sei, frescura pura!

― Você não é muito romântico, não é?!

― Por que diz isso?

― Está sempre debochando de coisas sensíveis. Primeiro foi das minhas flores, agora do tratamento com as mulheres.

― Espera aí, meu camarada, ser romântico é uma coisa, frescurite é outra. Eu sou romântico, muito romântico, para a sua informação ― e fez uma ridícula cara de amante latino; se é que posso me referir assim à expressão facial de um pássaro. Que expressão facial? você me pergunta. Mas eu garanto que vi uma expressão facial naquele rosto, digo, naquela cara.

― Você deve ser mesmo muito romântico ― falei com a credulidade de um niilista.

― Sou! ― disse com ira e deu dois passos para frente como se fosse dar início a algum desfile de moda. E continuou: ―Por exemplo: quando chamo uma pardalzinha pra sair, eu a levo numa poça d’água brilhante, dessas que refletem a lua, aí batemos um papo, eu cubro suas asas com as minhas, assobio no seu ouvido, digo que ela tem penas lindas e macias e algumas vezes até canto um pouco pra ela. Aí a belezinha fica toda manhosa, toda mole, e pronto, tá no bico! Eu sou mais eu, rapaz ― encerrou abrindo as asas, como um verdadeiro canastrão.

― É, parece bonito – lhe respondi com o único propósito de irritá-lo.

― Parece bonito? O que é que foi, tá de brincadeira comigo? Isso é lindo, rapaz, é o máximo do romantismo entre as aves. Você nunca levou uma menina para uma poça d’água?

― Poça d’água?

― Uma praia à noite, uma lagoa, lago, seja lá o que for que tenha água. A água é romântica, rapaz, deixa as fêmeas doidinhas; aquela água refletindo a lua, balançando mansamente, rumorejando, ahhh, é um barato, você deveria experimentar.

― Tá bom, vou pensar nisso.

― Pense. Fique aí pensando que agora eu tenho que ir embora.

― Mas já?

― Desculpe, mas preciso ir. Tenho um encontro. Uma pardalzinha linda tá me esperando no fio da esquina da Rua Gonçalves Medeiros com a Padre Xavier. Depois eu volto pra a gente continuar o papo.

― Tá certo. Obrigado por descer aqui pra falar comigo.

― Por nada! Foi um prazer, mané, ahahahaha. Brincadeirinha, estou tirando sarro com você. Vou nessa, senão a presa vai embora. Elas não gostam de esperar, sabe como é que é: passam horas ajeitando as penas, esmaltando o bico, e sempre chegando atrasadas aos encontros, mas na hora de esperar a gente, não têm paciência.

― É, sei como é.

― Pois é! Bem, vou indo. Até mais!

― Até mais, foi um prazer.

― Tchau, rapaz!

― Tchau!

E ele se foi. Bateu as asas e alçou vôo, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, deslizando pelo céu azul. Ainda o consegui acompanhar por algum tempo, mas depois foi se tornando cada vez menor, mais distante, até sumir entre os prédios que, por aqui, brotam do chão como erva daninha no mato. E eu fiquei ali, parado, pensando que nem no mais psicodélico dos meus sonhos sonhei um pássaro de voz argentina que me pregava liberdade; não, nem no meu mais louco devaneio surreal da adolescência me vi personagem de um conto de fadas. E agora nem sei mais o que pensar de mim. Melhor não pensar nada. Mas quanto a ele, como não pensar? Aquela pequena matraca ambulante contagia a gente, e sua liberdade me deixou saudoso das asas que nunca tive.




Imagem: Charles Chaplin, Young woman with a dove, 1860.
Texto publicado na revista Cronópios em 10 de outubro de 2009.

6 comentários :

  1. Um passarinho livre, com voz argentina, que se vá pra não sei onde, fazer não sei o que???? Deve ser che guevara né??? Um che sem motocicleta... só com asas...

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  2. Fernanda,

    Até poderia ser se a voz argentina estivesse se referindo ao país, mas se refere ao som de prata, de timbre fino como o da prata; tom argentino, ou argênteo, também é ligado a timbres, como é o caso do pássaro. Mas você foi bastante criativa na dedução, (rs!).

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  3. Viajei longe com seu texto magnífico. Fiquei absorta em meus pensamentos, me senti voando em alguns momentos e pensei em coisas simples que complicamos tanto.
    Obrigada por compartilhar.
    beijos

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  4. Cristiane,

    Que bom que gostou e entrou no clima do texto. A vida é mesmo bem mais simples do que a fazemos.

    Um beijo, menina, e obrigado pela visita!

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  5. Caí aqui meio que por acaso e me perdi na leitura.
    Parabéns, Lial! Agora mesmo é que aguardo o meu livro com ansiedade!!

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  6. Arlene, olha só como são as coisas, você cai aqui sem querer. Não adianta, não pode fugir das minhas letras, rs!
    E terá seu livro!

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