07/09/2009

setembro 07, 2009
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Não importa a época ou o momento pelo qual o mundo passa, algumas coisas serão iguais em qualquer fase da história. Esses dias, eu estava revendo uma pintura que gosto muito, de Gustave Courbet, e me peguei pensando o quanto homens e mulheres são iguais nos infortúnios e nas alegrias, ao redor do mundo. Não quero pregar com isso que todos sofrem ou se regozijam da mesma forma. Há diversas formas de sofrer ou se alegrar, mas no fundo todos choram e sorriem. Esse quadro de Courbet, a que me refiro, chama-se O homem ferido – é a imagem que se vê acima –, e se trata de um autorretrato, sendo, o pintor, o homem caído com uma marca de sangue a altura do peito. À primeira vista não há nada demais nessa imagem, além da qualidade magistral do quadro: vemos um homem no chão e ferido, tudo claro como o título da obra. Mas numa observação mais profunda sobre a origem dessa pintura e sua história descobre-se que radiografias feitas na década de 1970, por especialistas, revelaram que há um esboço diferente por baixo da pintura que se vê hoje; na pintura original, que está por baixo da que vemos, encontra-se esse mesmo homem abraçado a uma mulher que, segundo acredita-se, seria a esposa – ou simplesmente a mãe do filho de Courbet. Sabendo disso, especula-se por qual motivo teria, o pintor, alterado o seu quadro. A pintura renegada teria qualidade inferior a que queria dá-la o seu autor? Ou simplesmente seu autor desistiu da idéia primeira e concebeu uma nova? Segundo os historiadores, ele teria desistido sim da idéia inicial, mas não simplesmente por que mudou de idéia, por que encontrou uma idéia melhor, mas por que teria sido abandonado por essa mulher; e isso transformou o que poderia ser uma homenagem, e uma demonstração de amor, em um retrato de tristeza e sofrimento; o que nos leva a ver que um único quadro conta duas histórias: a alegria de se ter alguém a quem se ama, sobreposta pela tristeza de se ter perdido esse mesmo alguém; dando margem a duas interpretações para o que havia realmente ferido o coração do artista: o amor ou o aço. Ao sabermos da história que motivou a reformulação do quadro, não temos dúvida sobre o tipo de ferimento que alcançou Courbet e o dominou.

Mas esse quadro também me fez pensar que outros ferimentos nos afetam e podem fazer com que mudemos uma idéia original. Podemos almejar algo, lutar por isso, e nos encontrarmos, de repente, sangrando, o que nem sempre será sangue. Conquistas não são fáceis, e nem sempre são eternas; na vida, muito se ganha, tanto quanto muito se perde, e como falei no início, em qualquer parte do mundo, ou de qualquer época se sentirá isso. Então, não há como fugir? Não, não há como fugir, há como suavizar, assimilar e dominar o que sofreu. Nosso pintor mostrou-se ferido e, de certa forma, morto por esse sentimento de perda; contemplou sua ruína sentimental e se entregou a ela. Mas eu não faria isso, se fosse você, afinal, “ciência e contemplação não são em absoluto suficientes, irmão Henrique, se não se transmutam em poder” , já dizia ao seu primo, o sábio Zênon¹. E ele tinha razão, tudo o que se tem deve ser transformado em alguma espécie de força para produzir algo, até a si mesmo.

Feridos todos somos, o que diferencia é a forma como vamos sarar. Somos muitos, com muitas formas de reagir a tudo, e somos um, cada um de nós sendo um que é habitado por muitos: "Unos ego et multi in me"². Toda vez que nos ferimos, um desses muitos está ferido, então usamos os outros de nós para curarmos esse um e nascermos de novo; sempre nascemos de novo após um ferimento, porque é preciso nascer de novo, e para nascermos temos que destruir o mundo antigo que há em nós, desvincularmo-nos da comodidade desse mundo para encontrar, mesmo dolorosamente, uma nova razão de existir - como pensa Max Demian, de Hermann Hesse. Seria fácil deitar-se no chão e se deixar sangrar, mas não seria honesto consigo mesmo, seria? Mas não seria fácil reagir, seria? Nada é fácil quando se busca crescer; no entanto, “quando um homem orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo”³, completou ainda Max Demian.

Então, por que não lutar e sair do chão? Mas a escolha é sua: deitar-se e sangrar, sangrar, até esvair-se em sua autopiedade, ou enxugar o sangue, tomar um banho, limpar a blusa, abrir a porta e sair, vendo o dia com outros olhos e sentindo a noite com outra pele. Escolha!




Imagem: Gustave Courbet, O homem ferido, 1844-54. 
¹In: Yourcenar, Marguerite. A obra em negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
²Termo em Latim: Um único somos eu e muitos em mim.
³In: HESSE, Hermann. Demian. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

7 comentários :

  1. Muito boa a pintura feita em um século em que os livros e o modismo da auto- ajuda, auto - controle, auto - conhecimento e qualquer outro "auto" ainda não existiam... Um século em que demonstrar angustia, tristeza, amor, felicidade não era falta de estratégia emocional...
    Agora estamos a caminho de ser mais evoluídos: seremos robôs e não seres humanos...

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  2. Continua ótima crônica..
    Mais do que partidária de ter sentimentos, sou partidária de fazer um bom uso deles... um bom poema, um bom porre ou uma "boa volta por cima"...

    Detalhe: já tenho o livro em minhas mãos heheehe

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  3. Fernanda,

    Já está com o livro? Ótimo! Espero que goste.

    Um beijo!

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  4. Que eu adoro Courbet, você já sabe, mas hoje realmente sou mais William!

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  5. Ariane,

    Como você faz uma coisa dessa, me colocando acima de Courbet, ahahahaha. Sei que é só uma brincadeira, mas muito obrigado, obrigado pelas leituras, pelo carinho aos meus textos... E fico muito feliz que goste do que escrevo.

    Um grande beijo!

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  6. E a gente não pode tão somente se entregar à tristeza, curtir a ferida por um bom espaço de tempo e depois deixá-la lá e sair sozinho(a)?

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  7. Arlene, você deve fazer como lhe parecer melhor e como melhor lhe proporcionar energia para sobreagir. O que não acredito que seja bom é perder-se em sofrimento infindável, passando a gostar de sofrer.
    Muito bom ver você por aqui, mestra!

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