31/07/2007

julho 31, 2007
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Seria possível conceber uma poesia engraçada e ainda assim séria, do ponto de vista da qualidade que faz de uma poesia que ela seja uma poesia? E que tal uma poesia que dentro da sua graça contivesse o sério, a filosofia moral ou humana e amostragens da vida cotidiana? Parece difícil, e nosso lado preconceituoso custa a conceber tal coisa. Mas é possível, meus incrédulos leitores: “O homem e sua sombra”¹, de Affonso Romano de Sant’Anna é feito dessa poesia.

Dentre os vários nuances, a irreverência é marcante nos versos desse livro. Impossível não rir diante da situação do homem e sua sombra intrometida, no poema 12. Uma sombra ciumenta, pegajosa, sempre enxerida, se colocando entre o homem e sua amada, irritando seu “senhor” a ponto de este buscar “afastá-la,/ deixá-la em casa”, o que não conseguia porque “a sombra se dava conta/ e como uma cadela/ o seguia”. E fazia coisa pior: rebelde, talvez tomada por ciúmes, quando o homem “ia beijar a amada”, a simpática sombra “nos seus pés urinava”. Mas não parava por aí, por mais grotesco que urinar nos pés de alguém possa parecer, o pior, o realmente pior era que “quando o homem com sua amada deitava/ era a sombra que gozava.” Conseguem imaginar a cena? E que tal a cara do homem a perceber sua sombra gozando com sua amada? É possível ser mais hilariante?

Assim como os poemas acima, os outros que completam o livro são pequenas histórias – prosa em verso. Irreverentes as histórias – poesias -, irreverentes as sombras que, cheias de independência e atitude, muitas vezes sobrepujam o homem e o humilham, como no caso daquele que “pensou divorciar-se/ de sua sombra/ posto que ela o enganava”. Até conseguiu o divórcio junto ao juiz, contudo, “teve que pagar pensão/ à sombra que o corneava” (poema 24). Foi-se o tempo em que os entes corneavam e as sombras apenas olhavam – essa até rimou –; nesses versos as sombras participam da história, digamos, de forma mais contundente.

Algumas sombras são tão importantes na vida daquele a quem acompanham – e aqui se encontra um texto mais existencial, digamos, filosofal, de ar mais sutil – que chegam a ser a sua sustentação, como no caso do homem que acreditando fazer economia se não mais alimentasse sua sombra, “que o duplicava”, acabou descobrindo que se equivocava, e “definhou”./ Descobriu, então/ que sua sombra o sustentava” (poema 3).

Odiadas, amadas, castigadas, mal interpretadas e, com certeza, muito diferentes do que se imagina de uma sombra, sua relação com o homem é tão inusitada nesses poemas que se chega a confundir homem e sombra. No poema 2, um homem tem uma sombra branca “que de tão branca/ ninguém a via/ (...) tinha-se a impressão/ que uma coisa ausente/ lhe fazia companhia”. Mas aí se descobriu o terrível: “na verdade ele era a sombra/ de sua sombra/ – a parte da sombra que se via”. Um outro texto de cunho filosofal, introspectivo, sem perder o toque de humor.

Além desses versos, muitos outros chamam a atenção. Encontramos sombras que deitam “ao lado do homem/ roncando/ de camisola”, encontramos “um homem com sombra de cachorro/ que sonhava ter sombra de cavalo”, um homem que não podia dormir porque “sua sombra tagarelava”, e uma sombra no cúmulo da independência que diz ao seu dono: “- Vou à festa, quero orgia./ Se eu fosse você/ não me esperava”.

São vários os casos, as situações envolvendo as sombras. Em certos momentos parecem contrárias, o oposto dos homens; em outros parecem parte de uma alegoria poética sobre o claro e o escuro – os opostos –, o homem no claro e a sombra no escuro, e vice-versa; e em outros ainda se percebe uma certa imagem existencial do homem. Mas acima de tudo, os poemas são criativos e inteligentes, com um humor sensível e rápido, e, nos momentos mais sérios, são profundos e enigmáticos, sempre permeados por maravilhosas metáforas e inspiradas alegorias.

O livro ainda é acompanhado por ilustrações, em preto e branco - inspiradas nos poemas – de Maria Ângela Biscaia, em forma de cartões postais, inteligentemente colocados dentro da primeira capa do livro – um desses cartões foi que recebi de Affonso Romano, quando o congratulei pelo Jabuti de 2006, ganho pelo livro “Vestígios”. Coisa que você, leitor, pode fazer com os seus cartões: distribuí-los entre os amigos.

Pelo pouco que apresentei aqui e pelo que não apresentei – não posso tirar a graça da descoberta descrevendo o livro inteiro –, não deixe de ler “O homem e sua sombra”. A forma como você ver as sombras nunca mais será a mesma. E daqui para frente, meu leitor, minha leitora, se se sentir intimidado(a) na hora de fazer amor ou beijar sua amada, seu amado, não pense duas vezes: apague a luz; sombras não bisbilhotam no escuro – que me perdoe minha sombra.

E para dar um gostinho a mais, vou deixa-los com uma descrição de dois tipos curiosos de sombras encontrados nos homens, segundo nosso poeta mineiro. E se você, por um acaso do destino, possuir, ou for possuído, por uma dessas sombras, não culpe a mim, culpe ao Affonso que foi quem as descobriu.





O HOMEM E SUA SOMBRA 48

Há quem tenha a sombra redonda
E a acaricie a toda hora.
Há quem tenha a sombra quadrada
E em carregá-la se esfola.


Quem tem a sombra redonda
Deita e rola.
Quem tem a sombra quadrada
Se assenta e chora.








¹SANT’ANNA, Affonso Romano de. O homem e sua sombra. Porto Alegre: Alegoria, 2006. 
Imagem: Ilustração de Maria Angela Biscaia (cartão como parte integrante do livro O homem e sua sombra).

2 comentários :

  1. Querido amigo Lial, William
    Seu 'Blog é um encanto,
    Cada texto
    Mais interessante do que o outro,
    E com certeza voltarei outras vezes...

    Destaco aqui esses versos:

    "Quem tem a sombra redonda
    Deita e rola.
    Quem tem a sombra quadrada
    Se assenta e chora."

    Incrivel! Gostei muito!!

    Bjs e abraços poéticos a ti!!

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  2. Olá, Willian. Às vezes imagino o homem sempre seguido de sua sombra, até a morte.
    Escrevi algo a respeito e destaco um verso:
    Era um riso debochado e bem cretino
    que fazia gorgolejo em tom de voz
    a sombra esparramada em desatino
    abraçava o homem e dizia: "somos nós."

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