19/01/2007

janeiro 19, 2007
Muitas seriam as histórias de passageiros se resolvêssemos, com um gravador em punho, apanhar seus depoimentos. Mas como não posso me dar ao luxo dessa empreitada, vou resumi-los na odisséia de uma única passageira; aquela que vem ali correndo de braço erguido, chamando, gritando, implorando, suplicando: “Para! Espera! Hei!” Aquela que, finalmente, consegue fazer o gigante, repleto de pequenos, parar; o ônibus que, desesperadamente, tentava alcançar. É dela que vamos falar.

Apanhar esse ônibus, esse pelo qual ela tanto gritava, foi fácil: dois tropeções, gargalhadas daqueles que ainda não estão no momento de correr atrás do seu coletivo, e risinho de escárnio do motorista. Mas quem liga para os deboches depois de anos perseguindo esses ônibus que, pontualmente, chegam sempre atrasados?

Mas a nossa heroína conseguiu. É o que importa!!! Entrou no seu coletivo, empurrou uma, duas, três pessoas, pisou no pé de outras duas e acotovelou uma mais à frente, antes de encontrar uma brechinha entre dois homens, duas vezes o seu tamanho, e sofrer uma cutucada de um terceiro que se instalou, digamos, eroticamente, na sua retaguarda. Fazer o quê, vida de peão é assim mesmo. Quem sabe um dia pega um ônibus menos super-hiper-mega-lotado?!

Onde estávamos? Ah, sim! Bem... Ali vai nossa protagonista. Não podemos dizer que vai feliz, não há espaço para felicidade nessas condições. Contudo, sua situação é quase razoável: tem um lugar onde colocar seus pés – um espaço cinco por cinco centímetros, no piso do ônibus –, uma nesga de encosto de cadeira onde apoiar as pontas dos dedos das mãos – ela é baixinha e não alcança a barra superior do ônibus –, e como gratificação por tamanha boa vontade, poucas vezes alguém lhe derruba em cima do passageiro sentado a sua frente. “Se não fosse esse cheiro que vem do sovaco de um desses rapazes do meu lado. Quem será que anda com um cassaco morto debaixo do braço, o da direita ou o da esquerda? Melhor tentar esquecer, sabe-se lá se eu também não estou que é um gambá e nem percebi”, pensa ela com seus botões. No passado de Machado de Assis dizíamos que o indivíduo que está pensando com ele mesmo “cofia a barba”, mas em primeiro lugar ela não tem barba; em segundo, os tempos são outros. Apesar de que “pensar com os botões” também não é lá uma expressão muito moderna.

Difícil é a vida de Maria Deise da Silva Carneiro – o Deise é assim mesmo; liberdade poética da mãe. Entretanto tudo está preste a acabar. Não, eu não estou dizendo que nossa heroína vai passar a usar um transporte mais agradável e confortável. Não é nada disso! Não entendo porque esse otimismo esfuziante. Como diz certa máxima inglesa: “o otimista é um pessimista mal informado”. A questão é outra. O sofrimento vai acabar porque nossa princesa dos coletivos se aproxima da sua casa; melhor dizendo, da parada mais próxima – que fica a uns seis quarteirões de onde mora. O bairro é perigoso, é verdade, mas até hoje ela ainda não morreu. Foi assaltada, sim, oito ou nove vezes – nos dois últimos meses – mas vale a pena passar por isso para chegar no seu lar de dois cômodos.

Os senhores leitores que nunca tiveram o prazer de usar um coletivo, ou apenas usaram numa época em que não era tão instigante ser passageiro como hoje, ou ainda, sempre usou em momentos de baixo pique, os senhores devem estar se perguntando se não será igualmente complicado descer de um desses no dias atuais... Pode não ser a tarefa mais simples do mundo, mas não é nada que algumas acotoveladas, pisadas em pés inocentes – ou nem tão inocentes assim – e um pouco de força bruta não possa resolver; se o indivíduo que se presta a esse trabalho for do tipo “não tô nem aí, podem xingar”. É que as pessoas agredidas enquanto você passa não costumam ser muito tolerantes. Por sorte, boa sorte, a nossa heroína é desse tipo, o tipo que não liga para xingamentos, e quando liga xinga de volta e pronto, tudo está resolvido. Afinal tem um bom vocabulário, palavrões são herança de família.

Mas voltando a tarefa da decida. Ela empurra, se encolhe, se esguia, pisa um, dois, três, quatro... pés e... “Só mais um pouquinho, ai, ai, vai dá, vai dá, vai... vai... vai rasgar meu peito, ai, ai, quase, tá quase, quase... deu”, quase caindo escada a baixo – o que seria a alegria geral dos passageiros –, e desce. E então o prêmio: liberdade, ar quase puro a respirar e o fim do suplício. Mais um dia vencido. “We are the champions, my friend”, como diria o velho Queen.

Depois de horas e horas de trabalho duro, uma hora e meia de viagem imprensada feito gado que caminha para o abate, o fim do dia chega. Não foi tão ruim assim, afinal de contas está viva, inteira, inclusive... “Mas que droga! Quebrei minha sandália! Deve ter sido aquele filho da puta amarelo que enganchou meu pé no pé dele quando eu fui descer a porra da escada”. É... quase inteira.

E agora deixemos a nossa heroína descansar, enquanto toma um banho e passa mais algumas horas na cozinha esquentando a barriga no fogão novo – comprou em apenas 48 meses – fazendo o jantar de seu marido – o menos sutil espancador de mulheres do quarteirão – e dos filhos – se o diabo existir, esses dois garotos são filhos dele.

É como sempre digo, meus queridos: viver é bom, mas dói.


William Lial
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