16/03/2017

março 16, 2017
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Gustave Doré, Death on a pale horse.

Quanto do Bem há pelo mundo, quanto dele impulsiona de alguma forma, por inveja, cobiça, privação ou simples ação, seu contrário, o Mal? Quanto de Mal há pelo mundo, ao nosso redor, em nós e nos outros? Quais os níveis de maldade e quando ela é verdadeiramente Má? Quando o Mal é bom e por quê?

O Mal pode ser mais perverso e sádico do que muitos julgam. Há quem no mundo se diga Mal com regozijo, por entender que um grau de maldade exala virilidade, força e resistência; mas muitos desses não suportariam o verdadeiro Mal se dele fossem vítimas. O Mal pode ser muito mais mal do que estão dispostos a praticar certos falsos sádicos que andam entre as gentes; pelo menos o verdadeiro Mal na concepção de Bataille.

Para o filósofo e escritor francês Georges Bataille, o Mal verdadeiro é aquele que não obtém vantagem. Se você rouba ou mata para ter dinheiro, comer, pagar dívidas, enfim, receber algo em troca como um benefício, isso não é o verdadeiro Mal. O Mal é aquele que tem como única intenção o próprio Mal. Sobre isso, diz Bataille em seu ensaio “Emily Brontë” (1957), onde fala do Mal presente no livro Wuthering Heights, de 1847 (O Morro dos Ventos Uivantes):

Não podemos tomar por expressivas do Mal aquelas ações cujo fim é um benefício, uma vantagem material. Esse benefício, decerto, é egoísta, mas isso importa pouco se esperarmos dele outra coisa que não o próprio Mal: uma vantagem. Ao passo que, no sadismo, trata-se de gozar com a destruição contemplada, a destruição mais amarga sendo a morte do ser humano. É o sadismo que é o Mal: se matamos por uma vantagem material, não é o verdadeiro Mal, o mal puro, a menos que o assassino, para além da vantagem com que conta, goze simplesmente por gozar (BATAILLE, 2015, p. 16-17).

Bataille reconhece o sadismo como o Mal verdadeiro, pois esse implica num único prazer: praticar o Mal. O personagem Heatclief, em O Morro dos Ventos Uivantes, pratica o Mal contra Catherine e seu noivo apenas pelo prazer de infligi-lo a eles; não obterá nada em troca a não ser o deleite sádico de ver suas vítimas sofrerem.

O vício seria também, segundo Bataille, uma forma do verdadeiro Mal. O indivíduo se vicia no sadismo, em praticar o Mal pelo Mal, e isso o alimenta. O que não está longe de nós, dos nossos dias, aqui e agora no mundo fora da ficção, influenciando profundamente nossas horas. Encontramos o Mal verdadeiro hoje, como um vício, facilmente nas ruas do nosso país.

Hoje em dia vemos jovens e adultos, mulheres e homens matando por prazer e/ou vício. O assassinato de suas vítimas parece só mais uma parte do espetáculo cruel e sádico da ação de tomar do outro o que ele tem – como sua vida.

Depois, os sádicos vão ao bar mais próximo comemorar o roubo, a morte, comentando o feito com prazer e regozijo. Se presos, admitem o crime sorrindo – sobretudo, infelizmente, como temos visto na TV, se os assassinos forem adolescentes –, demonstrando todo o gozo que tiveram ao queimar, por exemplo, a mulher, desafortunada por só ter 20 reais na carteira. Isso é sadismo, isso é o verdadeiro Mal de que fala Bataille.

Não discuto aqui se esse sadismo ocorre porque o criminoso, jovem ou adulto, tem ou teve uma infância difícil, bem como outro motivo qualquer. As razões que o levaram a ser o que ele é hoje podem apontar a origem do Mal, mas não elimina sua prática e a responsabilidade por seu ato; no mínimo o distribui com outros, inclusive o Estado. Porém, reafirmo, não analiso nem julgo aqui os motivos desse Mal, meu objetivo neste momento é apenas a prática atual dele. Hoje o assassino pratica o Mal, ponto!

O Mal pelo Mal não tem limites. Ele é a morte. Ainda segundo Bataille, na visão do sádico, o Bem é o que o outro tem e ele não, daí pratica o contrário desse Bem. O Bem que o outro tem lhe causa inveja, e lhe parece ser o Mal porque é o que ele não tem. Então luta contra isso, quer destruir o Bem que lhe faz mal. Se o outro tem, ele deveria ter também, seja o luxo, seja a mulher amada. Mal contra o Bem. O Bem é a felicidade que ele vê no outro. É como dizer que odeia rico porque não é rico. Daí encontra desculpas para odiar o rico.

Aos olhos do criminoso que vê o que o outro tem e ele não, o mundo daquele é a representação do bem, e o dele não é; o afortunado torna-se representante daquele mundo e contrário ao mundo do Mal que o criminoso vive, e que a ele, mesmo que para justificar sua ação, parece bom, uma vez que não pode identificar o mundo do seu opositor com o Bem, “já que o combate” (BATAILLE, 2015, p. 18), por isso quer destruir o outro, simplesmente porque ele faz parte do mundo que é bom – o criminoso é contra o bem, odeia a bondade.

Na nossa forma de perceber o mundo, o Mal é sempre reconhecido a partir do Bem, sendo seu oposto. O Mal é contra o Bem, mesmo que o delinquente não queira admitir que luta contra o Bem. A ele não importa se o rico é uma pessoa boa, o rico vive, na sua visão, o Bem, o que representa o bom da vida, nos termos do mundo comum que ele nega, e o bandido odeia isso, então busca matar o que é bom. E sente prazer em destruí-lo. Nessa realidade, o Mal consumiu seu praticante. O Mal também o matou; o Mal realmente é a morte.

Vivemos hoje nessas esquinas banhadas de maldade, de inveja, cobiça e de vício do sadismo, praticado tanto por jovens quanto por adultos, tanto por homens quanto por mulheres. E a prova do sadismo de muitos desses está no sorriso estampado no rosto após o crime cometido; para alguns, a total indiferença pelo que praticaram, para outros o gozo perante a violência saboreada.

Isso difere do Mal praticado pelos grupos de radicais religiosos do Oriente. Esses praticam o Mal acreditando – pelo menos da parte dos jovens suicidas que se alistam para a Guerra Santa – que salvam o mundo do que reconhecem como seu Mal, sua ruína, o mundo degradado pela cobiça, desgraçado [desprovido da graça] pelo declínio da moral religiosa. Enquanto, por outro lado, muitos dos assassinos que assolam nossas ruas parecem ter o roubo como um pretexto para matar e não como seu objetivo; ou seja, praticam o Mal na sua forma mais fria.

Contudo, há ainda outra forma de Mal. Há um Mal que é naturalmente parte da vida, da natureza – da nossa natureza –, o Mal que é um simples desvio do Bem: o Mal que é o sinônimo da ação, uma vez que o Bem é a passividade, a calmaria do paraíso, muitas vezes enfadonho.

Nessa perspectiva, o Mal não é só a representação da maldade vulgar, vista nos noticiários diários ou nos escândalos do sadismo, ele também é símbolo de força propulsora, de esforço à realização da vida. Esse Mal, não é sádico, esse Mal é, repito, um desvio do Bem sacralizado.

Todavia é importante não confundi-lo com o desvio de caráter, esse não é o Mal/Ação de que falo, mas o Mal egoísta que se pratica à custa da desgraça do outro. O Mal de que falo é a energia, a recusa da atitude servil, tão ligada à passividade, corriqueiramente atribuída ao Bem. Esse Mal pode ser encontrado mesmo em Deus, uma vez que Deus é ação, e se a ação é característica do Mal, então Deus também traz o Mal em si (Deus de quem somos imagem e semelhança – daí sermos igualmente possuidores do Bem e do Mal), como retrata William Blake em O casamento do Céu e do Inferno (1790):

O Argumento
[...]
Sem contrário não há avanço. A Atração e a Repulsão, Razão e a Energia, Amor e Ódio são necessários à existência humana.
Desses contrários nasce o que as Religiões chamam de Bem e de Mal. O Bem é o passivo subordinado à razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia.
O Bem é o Céu. O Mal é o Inferno.
A Voz do Demônio
Todas as Bíblias ou códigos sagrados têm sido a causa dos seguintes erros:
1. Que o Homem possui dois princípios reais de existência: um Corpo e uma Alma.
2. Que a Energia, denominada Mal, provém unicamente do Corpo; e que a Razão, denominada Bem, deriva tão somente da Alma.
3. Que Deus atormentará o Homem na Eternidade por decorrência de sua Energia.
[...] A Energia é a única vida, e é a partir do Corpo; e a Razão é o limite ou a circunferência ao redor da Energia.
A Energia é o deleite eterno (BLAKE, 1906, p. 7-8).
Blake defende um olhar lúcido sobre o Mal, defende que ele é parte do divino, portanto, como sua imagem e semelhança, esse Mal também é parte de nós. O Mal é o despertar dos sentidos.

Para entender mais claramente o que é esse Mal, precisamos contrapô-lo ao Bem, ou seja, se o Bem representa a delicadeza, a suavidade, a mansidão, a complacência, a tranquilidade e a perfeição que também podem ser, tediosos e monótonos, então o Mal é o seu oposto, portanto, toda ação será sinônimo do Mal, sendo o Mal, nesses termos, não necessariamente a representação de uma maldade como a concebemos, mas uma representação de tudo o que é força e realização através do movimento de agir.

Assim, o Mal não deve nem pode ser excluído do nosso convívio, pois vivendo na parte oposta do Bem, assim como o Bem vive, portanto, também no seu oposto, um precisa do outro para se legitimar, bem como para a perfeita conjectura e realização da vida, tanto no que há de paz e mansidão quanto no que há de energia, força, atividade e movimento.

Isso somos nós, seres duos, contraditórios e antagônicos em nossa concepção, evolução e existência. Portanto, se deliberadamente negarmos uma parte do que somos, do Bem ou do Mal que nos alimenta e define, isso poderá nos trazer prejuízo e a possibilidade de sermos eternos seres incompletos, tomados de não aceitação e incompreensão interna, o que pesaria em nossas atitudes, em nossas relações com o outro e com a vida.

Isso não quer dizer que se aceitar é se entregar ao completo e mais sádico Mal, mas entender-se e saber administrar o que ambos os lados do ser lhe oferecem para seu enriquecimento humano e fazer deles o uso que lhe cabe.



BIBLIOGRAFIA:

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BLAKE, William. The marriage of heaven and hell. Boston: John W. Luce and Company, 1906.

2 comentários :

  1. Um belo estudo. Como faz um estudante de Arte com a Luz e a Sombra.
    W. J. Solha

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    1. Obrigado, Solha! E sim, é algo mesmo semelhante ao estudo de Luz e Sombra.
      Grande abraço!

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