10/01/2016

janeiro 10, 2016
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Outro dia, no ônibus em que eu me encontrava, um casal de adolescentes conversava com olhos quebrados. Mas seu dialeto era divertido, assim como as pantomimas que não paravam de brotar. Riam e gargalhavam ― apesar dos olhos cansados, olhos de ressaca, porém, sem a sensualidade de Capitu . O casal estava, como diria a minha avó, hoje reproduzida pela minha mãe, “animado feito pinto em merda”.

Então, em certo momento, resolvi apurar os ouvidos e tentar entender o que conversavam. Diziam muito do mesmo e com tal ênfase que, se antes eu trazia alguma dúvida de que o corpo fala, como afirmam Pierre Weil e Roland Tompakow, esses garotos aniquilaram com ela:

― E aí, como é que foi a vibe ontem? ― perguntou o rapaz.

― Irada! ― disse ela com um sorriso no rosto.

― Tu bebeu muito?

― Sóóóó... Foi tipo assim... muita cachaça, tá entendendo? Era só pá pá pá ― repetia a garota enquanto imitava uma garrafa nas mãos indo à boca.

― Sóóóó...

― Cara eu bebi muito, tipo, o Everest entrando em erupção de cachaça, saca?!

― Putz, gata, tu bebeu muito, maluco!

― Ah, cara, eu tomei todas e mais umas, hehehehe! Foi muito mel, maluco! Tipo assim, Rio Jordão de álcool, as Cataratas do Niágara de álcool, as Pirâmides do Egito de cachaça, saca?! Meu irmão, foi muito show, ó!

― Pô, perdi essa vibe maneira. Se eu tivesse lá, gata, eu tinha me afogado no meu próprio vômito de mim mesmo de tanto beber, saca? Hahahahaha! Tipo, eu tinha buáááá, sacou? ― e fez um gesto de vômito enquanto repetia o som nojento. ― Ah, gata, eu tinha surfado na baba que escorreria da minha boca, hahahaha!

― Cara, tu é nojento, ó! ― disse a menina esboçando um gesto de repulsa, enquanto sorria divertida.

― É que tu num sabe, gata, quando eu bebo, eu bebo merrrmo, eu tuco, tuco, tuco muito mel pra dentro, eu me afogo na cachaça. Minha vibe é beber até ver os anjos dançando “Babalu”, saca?! Eu sou o mestre, o deus, o mega-power-full-imperador da cachaça. Eu sou foda, eu sou foda!

― Hehehe, tu tinha se arrombado todo lá, Rodão! Cara, era álcool demais, tipo bomba atômica de vodka, tipo tornado, furacão, saca?! Foi muito maça, cara. Eu ainda tô bêba, eu. Mas vai ter outra amanhã. Tu devia ir comigo lá!

― Demorô! Já vou preparar o figueiredo ― disse o bebe-todas.

― Já é!!! ― respondeu a venha-a-nós-os-álcools-do-mundo. E resolveu falar do seu figueiredo também: ― O meu figueiredo tá sempre de prontidão, mané! O cara aguenta todas, hehehehe! Mas a gente vai se lascar de tanto beber, a gente vai nadar na cachaaaaça!

― Vai ser irado! ― bradou o rapaz, e, como se possuísse os dons do maluco perfumista Grenouille, d’O perfume, de Patrick Süskind, sonhou: ― Já posso até sentir o cheiro da maldita, hahahaha!

― Hahahaha! Ah, cara, quando eu penso no álcool que vai ter eu já começo a dançar de felicidade, sabe como é que é? ― disse a garota, enquanto fazia uns passinhos de dança, sem se levantar da cadeira.

― Ah, gata eu vou me entupir, me banhar, me naufragar na cachaça, vai ser muita lombra!

― E eu, então?! Cara, eu vou flutuar de bêbada, tipo assim, anjo de nuvem, saca, tipo gás hélio, vou, tipo assim, ter convulsões de cachaça, ser possuída pelo Demo do mel, vou explodir, tipo vulcão expelindo lava de álcool. Vai ser doido o bagulho!

― Vai mermo, hahahaha! Os imperadores da cachaça tão chegando, cambada!!! ― gritou o garoto com o punho erguido.

E seguiram falando de mel, cachaça e maldita até o ponto onde desceram do ônibus. Fiquei bêbado só de ouvi-los. Cheguei a cheirar minhas roupas, ainda no veículo, para saber se o forte odor de álcool que eu sentia ao meu redor não vinha de mim.

Dias depois, ainda me lembrava dos jovens que queriam beber o mundo sem desperdiçar uma gota do álcool que escorria dele. Tive sonhos, ou seriam pesadelos, com o mundo em formato de garrafa de cachaça, derramando gotas pelo gargalo, escorrendo pelo vidro, enquanto jovens sedentos se movimentavam ao seu redor com suas bocas abertas e suas línguas em cobra procurando lamber tudo o que escorria, sugando como dementes de seitas obscuras, entorpecidos por supostos deuses escatológicos.

Não parei de beber com os amigos por isso, nem deveria, não me nego esse prazer, mas sou moderado; porém, toda vez que vejo uma garrafa gotejando álcool da boca, ou mesmo que seja o suor numa garrafa de cerveja a escorrer pelo vidro, lembro-me dos sonhos que tive; assim como toda vez que vejo jovens com garrafas de cachaça ou cerveja nas mãos, lembro-me daqueles garotos no ônibus exalando álcool pelos olhos, inebriando o ar pela boca, hipnotizando a todos pelos gestos etílicos.



Imagem: Foto do Quarto do barril, do Hotel Hof Beverland, em Ostbevern, Alemanha. Neste quarto, os hospedes dormem numa cama feita de barril de cerveja.

6 comentários :

  1. Hilário e preocupante ao mesmo tempo saber que isso existe realmente, e o pior, entre jovens universitários, principalmente aqueles que vão cuidar no futuro de vidas humanas.

    O seu humor contagia ao mesmo tempo em que nos causa náuseas ler o "diálogo" travado entre os jovens. rs

    Abraços! Sonia Salim

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    1. Sim, Sonia, é preocupante. Muitas vezes achamos engraçado o comportamento deles, bebendo e idolatrando a bebida de forma verborrágica como se Dioniso estivesse ali, passando a mão sobre suas cabeças.

      Mas talvez, com um pouco de humor no texto se faça ver com mais facilidade também o estranho e ridículo dessa idolatria. Como digo lá, não que não bebamos, é bom beber com os amigos, mas o veneno é a dose, já diz a máxima.

      Lembro, quando estava na faculdade e os alunos de Filosofia (eu era de Letras) faziam uma festa toda sexta-feira regada a vinho. Antes passavam nas salas arrecadando doações para a compra da bebida, porém, como não participávamos da farra, reclamavam horrores do "povo de letras" porque só pensavam em estudar na universidade.

      Claro que nós nos divertíamos, mas fazíamos isso aos fins de semana, saíamos com os amigos, tínhamos nossos grupos, e não nos interessava usar o horário da aula para beber e fumar maconha, sobretudo nas dependências da universidade.

      Um abraço, minha amiga, e obrigado pela leitura e comentário.

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    2. Tudo na dose certa, como você mencionou. Há casos de festas de jovens que acabam madrugada adentro em delegacias levando os pais à loucura. Acho que o álcool altera os ânimos, no entanto, muitos jovens sabem a hora de estudar e divertir usam da responsabilidade. :)

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    3. Sim, Sonia, felizmente há os que não se submetem por completo aos cultos a Baco :d

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  2. A bebida, assim como uma boa música deve ser degustada e não engolida aos montes...

    Excelente crônica!

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    1. Com certeza, meu amigo!

      E obrigado pela leitura e comentário.

      Grande abraço!

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