06/03/2013

março 06, 2013
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Quando abriu os olhos naquela manhã, a manhã não se abriu. Nublado o céu, um nevoeiro parecia umedecer seus olhos. Caminhou pela casa, foi ao banheiro, lavou o rosto, a boca, foi à sala... e onde estava a sala? Imersa em névoa, a sala se assemelhava a um cemitério checo em dias gelados. Os sofás eram túmulos frios – que lhe corroeram a pele ao se sentar –, imóveis, distantes, medonhos. Os quadros ganharam vida. Olhavam-no de cima, do alto, como juízes de seu medo, de sua pequenez. Cercado, sentiu-se aflito, tomado de uma dor lancinante no fundo mais fundo do estômago. Num leve descuido, cambaleou, e seu pé saiu do chinelo, tocando o chão de gelo. Um imediato e cortante arrepio lhe subiu pelos pés, correu por suas pernas e fisgou sua coluna como agulhas a lhe espetarem. Gritou forte de susto e medo, de dor e assombro. Morreria? O teto parecia mais próximo, mais baixo, mais inviolável, escuro, cinza. As janelas abertas, e seus grandes olhos, olhavam-no com curiosidade e persistência, como se esperassem sua queda, que veio logo que imaginou a luz de chumbo sobre sua cabeça piscando suja e agressiva. No chão, flashes cortantes flutuavam sobre si, torciam e queimavam seus olhos, pareciam entrar em sua boca. Em angústia exacerbada gritava mudo; a voz não saía, o grito não saía, nada saía; enquanto a dor no estômago continuava, cada vez mais funda, cada vez cortante, aguda. Pequenas navalhas dilaceravam-no por dentro, o mundo se esvaía, o teto se desintegrava, enquanto o chão, já desmembrado com sua queda, esfacelava-se em pedaços disformes deixando seu corpo a flutuar entre dor e leveza. Sem sustentação, solto no vácuo, teve medo de despencar do nada para lugar nenhum. O mundo agora era um infindável buraco negro. Movendo-se como barata que se debate perante a morte, nada encontrou onde se agarrar: fios, cabelos, nada! Estava só, vazio no vazio. De repente, percebeu que seu corpo não mais doía. Colocou as mãos na barriga, antes navalhada, e nada! Nada sentiu porque nada havia sob suas mãos. Não havia mais barriga... não havia mais corpo. Do peito para baixo, não existia, do pescoço para baixo, não existia, do queixo para baixo, dos olhos... não existia. Onde estava? Onde estava onde? Sem espelhos para comprovar sua inexistência, feito vampiro que não se reflete, creu-se sonhando. Como não existia se ainda pensava – penso logo existo! –, se ainda se imaginava existindo? Sem ver-se, percebeu-se parte da falta de parte que era o vazio onde se encontrava, onde nada se encontrava. Feito o nada que era, fechou os olhos que já não existiam, perante o mundo sem mundo, e uma paz que só o nada oferece invadiu-lhe o que não havia para ser invadido, e sentiu-se sem sentir a beleza da ausência da dor, da angústia, do medo... Partícula do nada, nada mais o feria. Como nada, sentiu que poderia ser tudo, porque quando se parte do nada o tudo é um horizonte infinito.



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In: William Lial, Entre contos e crônicas.
Imagem: Decoração de jardim, inspirada em Salvador Dali.



10 comentários :

  1. Belo texto, William. Se a morte não for assim na vida real, deve ser em sonho.

    W. J. Solha

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  2. Pois é, Solha. Veremos, rs!

    Obrigado pela leitura e pelo elogio!

    Abraço!

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  3. Obrigado, Marcio!
    Um abraço meu amigo!

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  4. Belíssimo texto, William.
    Parabéns por conseguir transferir para o leitor tanta emoção e realidade em vários momentos da leitura.

    Cristina :-)

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  5. Obrigado, Cris, pela palavras gentis!

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  6. Quando comecei a ler seu texto me veio a mente "one" do Metallica; ao continuar lembrei de " Invisible Man" do Marillion...A a velha presunção do leitor, na tentativa de explicar a intenção do autor, acaba projetando a si mesmo no texto! Abração.

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  7. João Victor, obrigado pela leitura!

    Quanto às letras que lhe vieram à mente, toda interpretação é válida - ou quase toda -, e toda lembrança também. Mas há um fato curioso: conheço as duas músicas, e gosto das duas, mas nunca atentei para as letras, nunca traduzi, nunca olhei seus significados. E meu texto remeteu você a elas.

    Por isso também gosto da arte, nos leva a todos os lugares, reais ou imaginários.

    Um abraço, meu amigo!

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  8. Muito semelhante à depersonalização ou desrealização, termos usados pela psiquiatria, porém descritos de forma sofisticada. William, já tive medo dos sofás da minha sala também. :)

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  9. Kakita, é mesmo semelhante a uma desrealização. Mas o que lhe pareciam os sofás da sua sala que lhe causaram medo, rs?!

    Obrigado pela leitura!

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