19/06/2012

junho 19, 2012

Deitado na cama, sob o silêncio do escuro e a incandescência dos pensamentos que se atropelam diante seus olhos, ele rumina os dias recentes, mastiga cada palavra que mentiu, cada gesto que encenou, cada sorriso que maquiou. Dormindo mal nas últimas semanas, jura que todos os lençóis que põe na cama espinham, e que o calor é digno da fornalha do inferno. No entanto, vislumbra um futuro otimista, e tendo apenas as sombras como ouvintes, esbraveja com o punho em riste: 

― Agora é a minha vez, o triunfo final, a glória, chegar aonde nenhum homem jamais chegou... ― o que acaba assustando a pobre coruja na árvore do jardim e o faz pensar: ― Tenho que parar de assistir “Jornada nas Estrelas”. 

Mas na manhã seguinte, poucos dias antes do grande Dia, ele se mostra inteiro, sem sombras, sem pensamentos supérfluos, uma máquina de confiança: 

— Vamos intensificar nossa estratégia, meus pontos caíram ― diz para seu secretário e babão-mor. ― Não podemos esmorecer, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Descubra algo sobre meu adversário, alguma vergonha escondida, algum ato falho; todos têm algo a esconder ― que meus eleitores não me escutem, hahahahaha... Estou com medo ― sussurra para ninguém ouvir, cortando o riso, mas há ouvidos aguçados ao seu lado: 

— O senhor está com medo, futuro prefeito? ― pergunta o secretário de ouvidos biônicos. 

— Que com medo o quê, rapaz! Eu disse, estou correndo, correndo contra o tempo, contra vocês, meus assessores que não conseguem descobrir algo que justifique um ataque maciço ao meu adversário. 

— Calma, futuro prefeito. Vamos vencer! 

— É melhor mesmo, se não cabeças vão bolar!!! 

― O senhor quis dizer: rolar. 

― E não foi isso que eu disse?! Você está surdo, Geraldino? 

― Eu devo estar meio cansado, futuro prefeito. 

― Sei! 

— Futuro prefeito! 

― Que é? 

― Eu adoro essas frases de efeito que o senhor diz. O senhor é tão culto. 

— Isso é fruto de muito estudo, rapaz. 

— É, eu sei, futuro prefeito. 

Com esse clima de brilhantismo e cordialidade as horas passam e os dias com elas; enquanto mais comícios, mais promessas e menos verdades se atropelam, e a véspera do grande dia chega. 

— Amanhã! ― troveja o candidato ao entrar no escritório, e quase mata de susto, pelo menos, dois dos cinco assistentes. ― Amanhã é o grande Dia! Pequeno dia para quem perder, ou maior ainda pelo fato da perda, da tristeza da perda, quer dizer, maior sendo menor, grande por ser pequeno... É... bem... deixa pra lá ― e entra em sua sala depois de tão estimulante comentário. 

De frente ao espelho do lavável, ver sua roupa amarrotada e sua cara que deixou de ser rosto desde quando decidiu se candidatar, uma cara que desmorona, pende junto às olheiras, junto à boca de cantos caídos. “Será que vamos vencer?” ― pergunta-se em pensamento, olhos nos seus olhos que o olham do espelho. 

― Agora é esperar ― sentencia com meia esperança, já saindo do banheiro ―, esperar e fazer uma boca de urna básica, como dizem os jovens por aí. Só tenho que ter cuidado para ninguém me pegar. Mas não me pegam. Só as piabas são pegas em boca de urna, não os tubarões. “Verdade, Teta?”. Chico! Grande comediante, hahahahaha! Bem que ele podia ter aceitado o meu convite para subir ao palanque. Estava ocupado! Mas que a frase é boa é: “Verdade Teta?” ― disse mais uma vez, agora se dirigindo à pequena réplica do “Pensador”, de Rodin, ao lado da estante de livros que nunca leu. Mas quem respondeu não foi a réplica de Rodin, muito menos a Teta: 

— Meu nome não é Teta, futuro prefeito ― disse o secretário, parado feito uma assombração no meio da sala. 

— Pelo amor de Deus! Você estava aí, estrupício?! Vê se para de entrar sorrateiro na minha sala; quer me matar de susto, diabo?! Parece uma alma penada! 

― Desculpe, futuro prefeito! 

― E quando eu falei em Teta, eu estava me reportando a uma frase famosa de Chico Anísio, vestido de Pantaleão. Já assistiu a esse quadro? 

— Já ouvi falar, futuro prefeito ― respondeu cabisbaixo o babão-mor. 

— “Já ouvi falar”, mas que corja de povo sem cultura. Esquece rapaz! Vamos mudar de assunto. Quando eu ganhar essa eleição, vou ter que passar uns dias viajando, descansando de vocês. Eu mereço! 

— Merece, “Capitão, meu Capitão!”. 

— Eu assisti a esse filme! ― disse rápido, o candidato, feito picada de cobra ―, É “Sociedade dos Poetas Mortos”! 

— É verdade, futuro prefeito. O senhor conhece tudo mesmo. Esta cidade precisa de um homem culto assim no meio do povo. 

— Que no meio do povo, o quê?! Eu não sou dono de fábrica de álcool. Já imaginou o quanto de álcool eu teria que gastar para lavar as mãos se passasse o dia cumprimentando o povo? 

— O senhor lava as mãos, futuro prefeito, depois que cumprimenta os eleitores? 

— Como você é ingênuo, rapaz. Tudo é arte! Tudo isso faz parte da minha arte: seduzir antes de lavar. Por que a arte, como dizia Nietzsche: “a arte existe para que a verdade não nos destrua”. 

— Vixe, o senhor sabe tudo mesmo. Quem era esse tal de Nietzsche? 

― Era um pensador aí da Europa. Li essa frase uma vez numa revista de... Ah, mas isso não interessa, não é coisa para você. 

— Tá bem, futuro prefeito. 

Finalmente o dia, o grande dia chega. O candidato, assustadoramente nervoso, não baba por que se submete a outra forma de pôr para fora sua expectativa, uma forma entre quatro paredes e um sanitário. 

— É hoje, é hoje! ― geme no trono. ― Venceremos, venceremos! Munidos, venceremos! 

— Meu futuro prefeito! ― diz o secretário, com o corpo colado do lado de fora da porta do sanitário. 

— Vala, minha Nossa Senhora! Que diabo você está fazendo aí, homem?! Você tá de butuca do outro lado da porta, estrupício? Quer me matar, só pode ser! Já pensou se eu infarto aqui sentado no vaso? Já pensou no escândalo? Parece minha sombra! O que é que você quer, Geraldino? 

― Desculpe, seu futuro prefeito, é que a frase que o senhor falou aí agora não seria diferente não, não seria: unidos venceremos?! 

― E o que foi que eu disse, surdo dos infernos?! Vai procurar o que fazer! 

— Desculpe, futuro prefeito!

Dez horas depois, a contagem de votos começa. No decorrer dos minutos os votos computados são anunciados no rádio e na TV. Tremendo mais que vara verde em ventania, na sua sala, junto ao secretário, o candidato a prefeito acompanha a votação de cada urna aberta. 

― O que será de nós? — sussurra com seus botões. ― Ontem minha mãe me disse que nem ela vai votar em mim. 

— Por que não? ― perguntou o secretário que não perde nada. 

— Você tem ouvido biônico, coisa ruim? 

― Não tenho não, futuro prefeito. Mas por que sua mãe disse o que disse? 

― Ela disse que é por que me conhece desde criancinha ― respondeu a contragosto. 

— Deve ser brincadeira da sua mãe, futuro prefeito. 

— Não é não, ela me conhece mesmo ― disse com a cara triste, antes de cair em si: ― E por que diabos eu estou falando sobre isso com você? Presta atenção na apuração, rapaz! 

O relógio continua correndo, independente de quem será o prefeito: dezenove horas, vinte horas, vinte e uma, vinte e duas... E a apuração chega aos minutos finais. 

― Mas o que é isso, onde estão meus votos? ― pergunta o candidato a Deus, como se orasse. 

— Senhor deputado! ― chamou o secretário. ― As pesquisas de boca de urna que as TVs fizeram ontem já não estavam do nosso lado. 

— E você acha que eu não sei, acha que sou surdo e cego? Eu vi e ouvi tudo! Eu só não sei o que está acontecendo aqui, afinal minha campanha foi bem feita, nunca havia batido tanto em alguém! Meus oponentes não poderiam resisti a tantas injúrias que lhes lancei! A vitória deveria ser minha, e olha aí, não sei nem onde estão meus amigos. Até agora eu só tive um voto! 

— E acho que não vai ter mais não ― disse baixinho, o secretário. 

Mas o candidato ouviu: 

— O que você quer dizer com isso? 

— Desculpe, deputado, é que... 

― E o que aconteceu com o “futuro prefeito” como você vem me chamando na campanha inteira? 

― Desculpe, deput... futuro prefeito! 

― Desembucha logo, rapaz, não me deixe mais nervoso. Por que você acha que eu não vou ter mais votos? 

— É que eu... bem, eu... eu me enganei na urna eletrônica. 

— Como assim, enganou-ne na urna eletrônica? 

— Meus... me...me... meus dedos não me obedeceram, deputado. 

— Pare de me chamar de deputado e me conte logo o que aconteceu! 

— Eu não sei o que me aconteceu... eu acabei.... acabei.... acabei digitando seu número errado, depu... futuro prefeito. 

— Ah, fela da gaita! Até tu, Brutus! 

― Brutos?! Quem é esse tal de Brutus? Ele também errou o voto do senhor? ― ainda perguntou o secretário, antes de disparar numa carreira desembestada por entre os móveis do escritório, feito homem fugindo de marrada de bode. 

― Ah, não sabe quem é Brutus não?! Pois vem cá que eu vou te contar, finado Geraldino ― esbravejou o antes-futuro-prefeito, enquanto pegava a bandeira do município, hasteada em seu pequeno mastro de madeira no canto esquerdo da sala. 

― Vala-me, Deus! 

― Não corre não, não corre não! Vem cá desgraça! Vem cá! Vem cá que eu vou te matar, burro do diabo! Seu filho de uma porca imunda, estrupício dos infernos, juuumeeeennnto do cão!!! Vem cá, vem cá, para aí que eu vou te esfolar vivo, cagão do demônio! Para, para! 

― Ai, meu Jesus Cristin ― gemeu o secretário ―, se esse homem me pega, me empala com o pau da bandeira. Valei-me, meu São Judas Tadeu, patrono das causas perdidas, valei-me que eu não quero morrer assim não! 

E era bonito de se ver aquela perseguição digna de corrida de leão e caça nas savanas da África. Mas talvez você queira saber se houve ou não o tão temido empalamento? Bem... conto noutro dia.





In: LIAL, William. Prosas diversas. Fortaleza: Edição do autor.
Imagem: Zeng Fanzhi, A Man in Melancholy.

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