15/06/2011

junho 15, 2011
Eça de Queiroz, volta e meia, reaparece no Brasil. Há alguns anos, veio em forma de minissérie, Os Maias (2001) e O primo Basílio (1988), agora, volta ao imaginário brasileiro com o conto Um dia de chuva, lançado pela Cosac & Naify, numa edição primorosa, em capa dura, com ilustrações de Eloar Guazzelli e estabelecimento do texto, e notas, de Beatriz Berrini; além do crítico Antonio Candido, na quarta capa. Valendo lembrar que 2012 será o Ano de Portugal no Brasil, o que deverá alimentar ainda mais a presença do escritor português por aqui.

O conto, raro, inacabado e escrito próximo à morte de seu autor, está sendo publicado pela primeira vez de forma isolada – antes, só havia saído no Brasil em obras completas. E o fato de o texto encontrar-se inacabado, que poderia ser um dado desabonador à sua leitura, é, na verdade, um enriquecimento dela, por proporcionar um contato direto com a escrita do autor, na sua forma crua, sem acabamentos.

Porém, se ainda assim o leitor temer ler um texto incompleto, vai surpreender-se ao perceber que o conto soa concluído, faltando apenas a lapidação, como frisou Antonio Candido, em seu ensaio Eça de Queiroz: passado e presente, ao dizer que se o texto “é inacabado como redação, é completo como composição, sendo uma pequena obra-prima sem polimento final”.

Quanto ao enredo, este é simples. José Ernesto, jovem rico, herdeiro da fortuna do tio, e cansado de sua vida frívola em Lisboa, resolve realisar o velho sonho de infância de viver no campo. Encontra uma quinta à venda, pertencente a um fidalgo, chamado Dom Gaspar, e para lá segue, com o intuito de averiguar a propriedade e realizar a compra. No entanto, lá, as coisas não acontecem como o esperado. O padre Ribeiro, procurador de D. Gaspar, mostra-se, no primeiro momento, um tagarela maçante que não para de contar histórias infindáveis, e uma chuva intermitente não para de cair sobre o lugar, impossibilitando o rapaz de fazer o reconhecimento da propriedade.

Irritado com a chuva, com o padre e com o clima desolador da casa, com “aquela cal branca das paredes, o soalho nu remendado, com tábuas mal aplainadas”, Ernesto chega a pensar que talvez não seja boa ideia comprar a quinta; até que, numa de suas conversas com o padre, este lhe fala de Joana, filha mais nova de D. Gaspar. A partir daí, sempre que a moça é mencionada em conversas com o caseiro ou com o padre, Ernesto mostra-se bastante interessado, incitando seus interlocutores a dar-lhe mais informações sobre a moça de cabelos louros como o sol.

Entre conversas e revelações sobre Joana e suas ideias de igualdade, o rapaz vai, cada vez mais, sendo tomado pela sua presença, como numa paixão que ascende paulatinamente alimentando-se de detalhes do outro, até que, não suportando mais a chuva e a espera, resolve ir à casa de D. Gaspar, acompanhado do padre, com a desculpa de resolver a compra pessoalmente. Lá encontra Joana que, ao receber flores do padre, retira uma e põe “na casa do botão do casaco”, assim como havia feito Ernesto ao de sair de casa, o que mostra que “tinham ambos, ao peito, rosas da mesma roseira”, uma sentença de amor nascente que os leva ao casamento seis meses depois, numa sugestiva “manhã também de grande chuva”.

Apesar da simplicidade do enredo, o texto é vigoroso e muito bem arquitetado. Inclusive quando usa o discurso indireto livre, mesclado aos discursos diretos e ao pensamento do protagonista, dando dinamismo ao texto. Por outro lado, a ideia de o leitor acompanhar o desenvolvimento de uma paixão nascendo no peito de um personagem, através de relatos que escuta de outros, sem nunca ter visto a futura amada, faz do conto uma bela mostra de mestria. Além do mais, em nenhum momento é revelado claramente que o rapaz está apaixonado, tudo fica nas entrelinhas, nos silêncios e nos pensamentos do protagonista.

Mas a mestria de Eça de Queiroz também aparece no contraste entre a nebulosidade com que é descrita a quinta e Joana, bonita como o sol; assim como nas descrições dos cabelos de ouro da moça que nos fazem vê-los brilhar a nossa frente, e da casa, onde ouvimos a tagarelice do padre, a chuva caindo, as janelas embaçadas, e quase sentimos o cheiro dos campos molhados lá fora.

Um dia de chuva encontra-se bem distante do clima dos livros mais famosos do autor. Nele não há a tradicional crítica de costumes ou os julgamentos ferozes e as ironias à sociedade portuguesa, comum em seus textos anteriores; o que, porém, já era uma característica de seus últimos escritos, quando mostrava um tom reconciliador com sua terra natal e com as tradições lusitanas; contudo, sem perder a forma magistral e sutil de escrever, como observou Antonio Candido no artigo já citado.

Essas tradições lusitanas podem ser observadas na crítica do padre Ribeiro às “ideias livres” de Joana que “chega a ser republicana”, pois “para ela todos são iguais! Não há fidalguia nem povo”, ao contrário do padre que acredita em hierarquias. Porém, o texto não deixa de tecer certas críticas a Lisboa, como quando ridiculariza suas moças, ao dizer que têm pouca saúde e que essa nem ao menos é “compensada pelo requinte, o afinamento da natureza”, pois, na verdade, “são doentinhas e tolinhas”. Características narrativas reveladoras dos problemas da cidade e das vantagens do campo, o que nos remete a romances como A ilustre casa de Ramires (1900) e A cidade e as serras (1901), publicados após a morte do autor.

Em fim, em Um dia de chuva acompanhamos, passo a passo, o surgimento de uma paixão a partir da alma do protagonista, num clima de expectativa que nos provoca o desejo de lê-lo do começo ao fim, sem intervalos, ansioso por descobrir o que virá depois de, literalmente, as águas correrem.



Biografia de Eça de Queiroz

José Maria Eça de Queiroz nasceu em 25 de Novembro de 1845, em Póvoa de Varzim. Cursou direito, representou no Teatro Acadêmico, fundou e dirigiu, em Évora, o jornal Distrito de Évora, foi administrador do Distrito de Leiria, cônsul em Havana e inglaterra, sócio correspondente da Academia Real das Ciências e discípulo do escritor francês Gustave Flaubert, que muito o influenciou. É considerado, por muitos, o criador do Realismo português, mas sua poder ser dividida em três fases: a dos primeiros textos, publicados em forma de folhetins, reunidos depois em Prosas Bárbaras (1903); a fase Realista, abordando o comportamento de pessoas, com pessimismo, ironia e humor, em romances como O Crime do Padre Amaro (1876), O Primo Basílio (1878) e Os Maias (1889); e a fase Pós-realista, ou Nacionalista, mais voltada para o elogio da vida no campo e para as tradições portuguesas, em livros como A Relíquia (1887), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Cidade e as Serras (1901) e o conto aqui apresentado. Além de hagiografias (biografias de santos), que também escreveu nesses momentos finais; o que se opunha ao ar anticlerical de sua produção anterior. E deixou, por fim, uma obra que acompanhou todas as oscilações ideológicas, sociais e culturais de seu tempo, morrendo na cidade de Paris, em 1900.



Texto publicado no Jornal O Povo, em 14 de maio de 2011. 
Imagem: 1. Capa do livro; 2. Retirada do livro; 3. Retirada do livro; 4. Eça de Queiroz.

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