Eça de Queiroz, volta e meia, reaparece no Brasil. Há alguns anos, veio em forma de minissérie, Os Maias (2001) e O primo Basílio (1988), agora, volta ao imaginário brasileiro com o conto Um dia de chuva, lançado pela Cosac & Naify, numa edição primorosa, em capa dura, com ilustrações de Eloar Guazzelli e estabelecimento do texto, e notas, de Beatriz Berrini; além do crítico Antonio Candido, na quarta capa. Valendo lembrar que 2012 será o Ano de Portugal no Brasil, o que deverá alimentar ainda mais a presença do escritor português por aqui.
O conto, raro, inacabado e escrito próximo à morte de seu autor, está sendo publicado pela primeira vez de forma isolada – antes, só havia saído no Brasil em obras completas. E o fato de o texto encontrar-se inacabado, que poderia ser um dado desabonador à sua leitura, é, na verdade, um enriquecimento dela, por proporcionar um contato direto com a escrita do autor, na sua forma crua, sem acabamentos.
Porém, se ainda assim o leitor temer ler um texto incompleto, vai surpreender-se ao perceber que o conto soa concluído, faltando apenas a lapidação, como frisou Antonio Candido, em seu ensaio Eça de Queiroz: passado e presente, ao dizer que se o texto “é inacabado como redação, é completo como composição, sendo uma pequena obra-prima sem polimento final”.
Quanto ao enredo, este é simples. José Ernesto, jovem rico, herdeiro da fortuna do tio, e cansado de sua vida frívola em Lisboa, resolve realisar o velho sonho de infância de viver no campo. Encontra uma quinta à venda, pertencente a um fidalgo, chamado Dom Gaspar, e para lá segue, com o intuito de averiguar a propriedade e realizar a compra. No entanto, lá, as coisas não acontecem como o esperado. O padre Ribeiro, procurador de D. Gaspar, mostra-se, no primeiro momento, um tagarela maçante que não para de contar histórias infindáveis, e uma chuva intermitente não para de cair sobre o lugar, impossibilitando o rapaz de fazer o reconhecimento da propriedade.
Irritado com a chuva, com o padre e com o clima desolador da casa, com “aquela cal branca das paredes, o soalho nu remendado, com tábuas mal aplainadas”, Ernesto chega a pensar que talvez não seja boa ideia comprar a quinta; até que, numa de suas conversas com o padre, este lhe fala de Joana, filha mais nova de D. Gaspar. A partir daí, sempre que a moça é mencionada em conversas com o caseiro ou com o padre, Ernesto mostra-se bastante interessado, incitando seus interlocutores a dar-lhe mais informações sobre a moça de cabelos louros como o sol.

Apesar da simplicidade do enredo, o texto é vigoroso e muito bem arquitetado. Inclusive quando usa o discurso indireto livre, mesclado aos discursos diretos e ao pensamento do protagonista, dando dinamismo ao texto. Por outro lado, a ideia de o leitor acompanhar o desenvolvimento de uma paixão nascendo no peito de um personagem, através de relatos que escuta de outros, sem nunca ter visto a futura amada, faz do conto uma bela mostra de mestria. Além do mais, em nenhum momento é revelado claramente que o rapaz está apaixonado, tudo fica nas entrelinhas, nos silêncios e nos pensamentos do protagonista.
Mas a mestria de Eça de Queiroz também aparece no contraste entre a nebulosidade com que é descrita a quinta e Joana, bonita como o sol; assim como nas descrições dos cabelos de ouro da moça que nos fazem vê-los brilhar a nossa frente, e da casa, onde ouvimos a tagarelice do padre, a chuva caindo, as janelas embaçadas, e quase sentimos o cheiro dos campos molhados lá fora.
Um dia de chuva encontra-se bem distante do clima dos livros mais famosos do autor. Nele não há a tradicional crítica de costumes ou os julgamentos ferozes e as ironias à sociedade portuguesa, comum em seus textos anteriores; o que, porém, já era uma característica de seus últimos escritos, quando mostrava um tom reconciliador com sua terra natal e com as tradições lusitanas; contudo, sem perder a forma magistral e sutil de escrever, como observou Antonio Candido no artigo já citado.
Essas tradições lusitanas podem ser observadas na crítica do padre Ribeiro às “ideias livres” de Joana que “chega a ser republicana”, pois “para ela todos são iguais! Não há fidalguia nem povo”, ao contrário do padre que acredita em hierarquias. Porém, o texto não deixa de tecer certas críticas a Lisboa, como quando ridiculariza suas moças, ao dizer que têm pouca saúde e que essa nem ao menos é “compensada pelo requinte, o afinamento da natureza”, pois, na verdade, “são doentinhas e tolinhas”. Características narrativas reveladoras dos problemas da cidade e das vantagens do campo, o que nos remete a romances como A ilustre casa de Ramires (1900) e A cidade e as serras (1901), publicados após a morte do autor.
Em fim, em Um dia de chuva acompanhamos, passo a passo, o surgimento de uma paixão a partir da alma do protagonista, num clima de expectativa que nos provoca o desejo de lê-lo do começo ao fim, sem intervalos, ansioso por descobrir o que virá depois de, literalmente, as águas correrem.
Biografia de Eça de Queiroz

Texto publicado no Jornal O Povo, em 14 de maio de 2011.
Imagem: 1. Capa do livro; 2. Retirada do livro; 3. Retirada do livro; 4. Eça de Queiroz.
Imagem: 1. Capa do livro; 2. Retirada do livro; 3. Retirada do livro; 4. Eça de Queiroz.
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