29/04/2010

abril 29, 2010
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― Ei! Aonde você vai, rapaz? Vem aqui, vem me ler! Mas por que esse povo foge tanto de mim? Tá com medo, ô mané? Eu sou tão bonito... Olha só essa capa que beleza, olha essas páginas, e o cheirinho, eu adoro esse meu cheirinho de livro... Por que o mané não quis me ler? Vai ver que é mané mesmo. Não sabe o que tá perdendo ouviu, seu besta?!

Triste, deu quatro passos, sentou-se na calçada e se calou. Ele era um desses livros que são deixados pelos bancos de praça dos parques na esperança de que muitos os peguem e leiam, criando assim mais leitores, levando o livro talvez àqueles que nunca tiveram a oportunidade de lê-los. Mas esse não teve sorte, deitado ali, naquele banco, há oito dias e nenhum leitor.

― Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire; não é assim que dizem os derrotados, os fracassados?! ― lamentava sua sorte. ― Aonde esse mundo vai descambar? Opa! O que que é isso? Vira esse carro pra lá! Vira! Vira! Não vem não, não vem não! Olha a poça d’água aí, rapaz! Olha a poça! Olha a poça! Olha aí, me molhou todo, o desgraçado! Não me viu aqui não, ô barbeiro? Eu sou um livro importante sabia?! Você pode ter estragado o couro da minha capa, troglodita!

Mas ninguém o ouviu. E o motorista, ah, o motorista já havia dobrado a segunda esquina; nem tomou conhecimento da existência daquele pequeno objeto com capa de couro marrom e letras douradas que diziam Turguêniev – Pais e Filhos; muito menos viu que o miolo daquele livro era em papel altaprint 90 g/m², liso, branco, prazeroso de se pegar e que agora estava encharcado.

― E agora quem vai me querer? ― continuou, o ignorado. ― Ah mundo cão! Ninguém vai olhar para mim. Por que me mandaram para esse país? Por quê? Ah, santo patrono dos livros inválidos, o que te fiz? Ó, por que não me fez ser concebido num mundo de homens e livros, como pregou Monteiro Lobato? Por que me deixou nesse mundo de homens pios? Tu és cruel, tu és muito cruel. Olha para mim ― e abriu suas páginas, como se abrisse braços ―, olha para mim, santo desleal, eu só quero divertir, ensinar... Por que eles não me querem, santo meu? E vós, ó Pai, o que aconteceu com o rogai por nós? Por que não afasta de mim esse cálice, Pai, e me dá um pouco de paz?

Triste é a vida de quem muito tem a oferecer e poucos existem para receber. Coitado, ali, de volta ao banco, deitou-se e chorou como os livros choram: em silêncio. E por um bom tempo, nenhum passante parou para resgatá-lo, até que, muito tempo depois:

― Ei, ei, quem é você, quem é você? ― perguntou o livro, assustado.

― Olha só que livro mais bonito! ― disse o velhinho que o manejava. ― Mas está todo molhado. Quem será que fez isso com você?

― Finalmente alguém reconhece o meu valor! ― disse, já com um sorriso estampado na capa; mas o velhinho não o ouviu, claro, os humanos e os livros só se entendem por palavras mudas. Contudo, de alguma forma, sem ler uma frase do livro, além de seu título, o velhinho se alegrou com o achado, acariciou o volume nas mãos e o levou consigo.

― Vou cuidar de você ― disse o simpático homem enquanto caminhava rumo a sua casa. ― Vou limpá-lo, vou tratá-lo no meu atelier e você vai ficar novinho. Você vai ver!

― Ah, finalmente alguém sensível, finalmente... Espera um pouco! Eu não já conheço o senhor? O senhor não é aquele bibliófilo famoso? O senhor é José Mindlin, não é?! Ô, meu Deus, obrigado, obrigado, senhor, eu estou salvo!

Como era de se imaginar, o velhinho não respondeu, nem o de baixo, nem o de cima; mas o de baixo caminhava feliz para casa, agora com mais um filho adotivo debaixo do braço.




Imagem: Serge Block, s/d.

6 comentários :

  1. Esse livro teve sorte! Olha só quem foi encontrá-lo...

    Gostei do conto, bem criativo. Pena que tantos livros bons ficam empoeirando sem que sejam devidamente apreciados.

    Abraço!

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  2. Obrigado por estar sempre por aqui, Cristine! Fico sempre feliz que goste dos meus textos.

    Um abraço!

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  3. Muito bom, William, parabéns. Terminar um dia com um final feliz assim, é um presentão!

    Um abraço.
    Marcelo.

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  4. Willian,
    Eu também gostei muito dos seus textos. Ésum cronista inteligente, sensível e criativo. Comno poeta, além dos adjetivos anteriores és também intenso, forte e marcante. Parabéns. Gostaria de convidá-lo a visitar meu blog http://emaranhadorufiniano.blogspot.com e o de meu grupo http://po-de-poesia.blogspot.com

    Seus comentários serão muito bem vindos.

    Grande abraço

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  5. Obrigado, Márcio, por me visitar e por seus elogios. Fico feliz com isso. Pode ter certeza que o visitarei também.

    Um grande abraço!

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  6. Marcelo, obrigado pela visita e que bom que gostou.
    Um abraço!

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