10/01/2010

janeiro 10, 2010
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A única coisa que sustenta uma pessoa ao longo da vida é a consciência da imensa inferioridade de todos os demais, e esse é um sentimento que eu sempre cultivei.
(Em O Foguete notável, conto de Oscar Wilde.)


A calçada era estreita, e eu já estava lá há, pelo menos, cinco minutos. Nada mais sensato do que eu possuir prioridade sobre ela. Então, displicente como bicho-preguiça, arrastando os pés, olhando em frente, sem olhar nada, caminha um homem em minha direção, ocupando a mesma calçada que eu, o mesmo lado da calçada que eu. Ele vai mudar de lado, claro ― pensei. Estávamos a uns dez metros de distância um do outro, ou seja, faltava pouco tempo para uma colisão, se o dito cujo que se intrometera na minha calçada não mudasse de lado.

― Daqui não saio ― resmunguei ―, cheguei primeiro.

Mas o intruso não dava sinal de que sairia da minha frente. Possivelmente até já havia me visto e estava preparado para uma disputa.

― Quem ele pensa que é, um gladiador? ― murmurei com meus botões, já azedando. ― Nem que ele esbarre em mim eu mudo meu rumo. Canalha intrometido, tanto lugar na porcaria desta calçada e ele vem logo na minha direção.

Já pronto para o jogo de quem-pode-mais, eu mantinha o peito estufado, viril, macho até a raiz dos meus cabelos ausentes. O inimigo parecia fingir que não me via, obviamente uma tática cínica para não mudar de lado e me enfrentar.

― O babaca está achando que eu sou um mané ― confidenciei-me entre os dentes trincados. ― Quero o ver passar por cima de mim. Deve estar crente que eu vou me acovardar, esse esmilinguido duma figa!

Agora a distância para a colisão não era mais do que três metros, e o desgraçado vindo, braços balançando como duas gangorras laterais, pernas abertas como uma vítima de assaduras nas partes, e a cabeça pro lado, feito um garoto propaganda de cuecas.

― É agora ― arranhei os dentes, ereto, bravo, de olhos vidrados, coração saltando, boca de vale-tudo, punhos cerrados e muita disposição para o que viria; enquanto o esmilinguido caminhava invertebrado, blazè, com cara de tô-nem-vendo!

E assim nos aproximamos um do outro, cada vez mais, cada vez mais, centímetro a centímetro, segundo a segundo, feito dois guerreiros de países inimigos, dois gorilas disputando a fêmea, destemidos, prontos a dar nossas vidas pela calçada, até que, olho no olho, já sentindo o cheiro fétido do inimigo, ombros prestes ao impacto, dei meio passo para a direita e o Zé Ruela um passo inteiro para o sentido contrário. Ainda tocamos os ombros, levemente, mas eu, claro, venci. Eu sabia ― vibrei por dentro com um sorriso vitorioso nos lábios. Ganhei do salsichão por meio passo. Aqui não tem pra ninguém, rapá ― ainda gritei por dentro ―, a calçada é minha! E continuei meu caminho sem olhar pra trás, que é assim que um homem de verdade faz, após uma disputa de vida ou morte, ele segue sem medo de traição, por que olhar pra trás é sinal de medo, de covardia, e gladiadores não atacam pelas costas. É assim que é, e assim que sempre será.

Jamais, em toda a minha vida de calçada, perdi uma disputa dessas pra marmanjo nenhum. Pode ser grande ou pequeno a calçada é minha. Tem gente que pensa que é dono do mundo, anda numa calçada e não arreda o pé quando vê alguém no sentido contrário, mas comigo não tem essa não, apareceu na minha frente vai ter que mudar de lado. Teve até uma vez que uma senhora de uns setenta e dois anos caminhava sozinha na calçada que eu estava e não mudou de lado até que eu esbarrasse nela e gritasse Vê se olha por onde anda, matusalém! E a velha ainda teve o desplante de me sacudir o guarda-chuva bufando um palavrão que só consegui entender o final: “... duma égua”. Ora, ora, acha que só por que foi batizada por João Batista tem mais direito a calçada do que eu. Ah, e teve também um senhor numa cadeira de rodas que quase me quebra o joelho, o barbeiro. Não sei por que raios aquele senhor andava, ou melhor, rodava sozinho por aquela calçada, só sei que vinha em minha direção, com as mãos empurrando as rodas, numa velocidade cruzeiro mediana, quando há uma distância de apenas cinco metros, olha pra mim com cara de “Sai da frente!” e espera nitidamente que eu mude o meu curso. Dei-lhe uma trombada que quase cai de braços abertos por cima do atrevido filho da mãe.

Onde já se viu, só por que está numa cadeira de rodas acha que pode passar por onde quiser, e os outros que se lixem. É verdade que eu quase quebrava meu joelho, mas o velho teve que agüentar o meu peito contra a sua cabeça. Deve tá sentindo o cheiro gostoso do meu perfume até hoje. Mas o pior de tudo é que ele, o dono do mundo, ainda me xingou, me chamou de fela da gaita. Mas que diabo é fela da gaita? Deve ser um daqueles palavrões do tempo em que a Pedra da Galinha Choca, em Quixadá, ainda era um ovo. Mas tudo bem, o importante é que, de uma forma ou de outra, ninguém me vence nesse negócio de disputar lugar na calçada. Eu sou o rei da calçada.

E você aí, também é do tipo que quando vê alguém vindo na calçada, na sua direção, também faz de tudo para não ceder o lugar? Cuidado, a gente pode ser encontrar por aí. E se isso acontecer, muda de lado, que o meu lado é meu.





Imagem: Oswaldo Goeldi, Sem título, circa 1930, carvão. O autor (1895-1961), que nasceu no Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, foi um expoente do modernismo brasileiro, identificado com o expressionismo, e cuja obra retratou a alienação e a solidão do homem moderno, sendo considerado o mais importante e perfeccionista na arte da xilogravura que o Brasil conheceu.

6 comentários :

  1. Rir é muito bom. Adorei. Batisada por João Batista, arrepiar até a raiz dos cabelos que já não tem.
    Já vi isso muito no transito. Faz tempo que não disputo, acho que passou essa fase de afirmação....há muito tempo.
    abraços

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  2. Estou com medo de topar com este cara... Tb não cedo o meu lado da calçada, assim, tão facilmente... o que que este mané tá pensando??? rsrs

    Muito bom o texto!!! Adorei!!!!!

    Bjos

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  3. felá da gaita?
    KKKKKKKKKK
    Muito bom o texto.
    Ah,posso te contar uma coisa?
    Sou parecida com ele,não com tanta implicância assim,com todo mundo(o meu é mais com mulheres rsrs)mas sou um pouco disso tbm.1/2 marrenta sabe?

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  4. Angela, obrigado. Parece que muita gente já passou por isso ou viu. Um beijo!

    Bruna, é isso aí. Quem ele pensa que é? Mas cuidado para não se machucar. Um beijo, ma bella.

    Mari, que bom que gostou. Um grande beijo!

    Luciana, menina má. Gosta de peitar mulheres na calçada, né? Não cede o lugar... rs! Um beijo, menina!

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  5. Ué,por nada!
    Mérito so seu!
    Volto(e isso não é uma ameaça rsrs)
    Xeru

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