22/01/2010

janeiro 22, 2010
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Entre o sobe e desce dos dias, mais um ano chegou. Sobre tapetes vermelhos e lama estamos aqui outra vez. Quem sabe até otimistas ― como os ingleses quando afirmam que os otimistas são pessimistas mal informados. Seja como for, chegamos aqui e alguns de nós até se julgam mais felizes. Desde o período do Natal, surgimos com roupas novas, pintamos a casa, tomamos o vinho na Santa Ceia, comemos o coitado do peru (que nem se quer sabe quem foi Jesus Cristo, como também não sabe por que sua espécie é sempre comida nessa época), presenteamos os amigos secretos com objetos que consideramos a sua cara: meias roxas, cintos quase de couro, discos da moda e livros de auto-ajuda ― afinal todos precisam de palavras sábias de botequim para viver melhor (putz!). Com os presentes em mãos ― “Que porcaria foi essa que eu ganhei? Tem gente que não se toca” ―, nem sempre nos encontramos satisfeitos.

Depois das lambanças e daquela satisfação “sincera” ocasionada pelos presentes tronchos, cumprimentamos pessoas e mais pessoas com votos de Boas Festas, Feliz Natal e Próspero Ano Novo; pessoas que, na realidade, mal ou nada, conhecemos. Será que isso se deve a nossa grandiosidade humana, ou ao nosso manual judaico-cristão de boas maneiras? A realidade é que ligamos o piloto automático e seguimos, como os guiados de Huxley em seu Admirável Mundo Novo, chorando e cantando e seguindo o “jingle bell”.

Então, após o sobe e desce dos dias, chegamos aqui. Chegamos quase felizes, acreditando no ano que virá, acreditando que as pessoas serão mais educadas, que o governo pensará em nós, que a prefeitura será melhor administrada, que a arte será respeitada, que o homem continuará evoluindo ― ou começará a evoluir ―, que os dias serão mais claros e as noites menos escuras.

Muitos de nós lutamos bastante a cada ano, lutamos pela sobrevivência, lutamos por nossas idéias, pelos amigos, pelo próximo, combatemos adversidades sem número, mas é preciso cautela, pois “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro”, uma vez que “se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”[1], já dizia Nietzsche. E que abismo temos visto nesse último ano! Causaria inveja ao Grand Cannyon americano.

Apesar de tudo vamos tentar não ser tão trágicos quanto Heine[2] ― que desejava ver os inimigos enforcados ― e odiarmos a todos, desejando seu mau; visto que assim cairíamos no ponto citado por Nietzsche, e nos tornaríamos igual ao outro que nos ofendeu. Estamos aqui, vivemos mais um ano, o mundo se tornou mais velho e nós nos tornamos mais velhos, e mesmo que, como dizia Horácio, “os anos à medida que vem, trazem consigo vantagens sem-número; à medida que se vão, levam consigo sem-número delas”[3], se somos espertos, aprendemos algo mais, crescemos de alguma forma.

Independente de tudo, mais um ano se acabou, mas nós não, estamos aqui no início de outro. Vimos e sofremos tudo. Alguns amaram, outros odiaram, fomos trágicos e esperançosos, sorrimos e choramos, porém, provavelmente, ainda acreditamos em algo, ainda nos importamos com o que existe a nossa volta, não nos fazemos de desentendidos, mesmo sabendo que dessa forma somos os que mais sentem e padecem com o mundo; é o preço por sermos livres ― somos punidos por nossas virtudes[4], também dizia Nietzsche. Mas punidos seguimos o nosso caminho, quase beatos, numa crença quase religiosa, numa busca insistente de se dar justiça e prazer aos atos e à vida; pois acreditamos que existe “alguma coisa pela qual vale à pena viver na terra, como virtude, arte, música, dança, razão... ― alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e divina”[5], ainda nas palavras do alemão (que morreu louco mas acreditando em si).

Fomos roubados, nossa saúde decaiu, fomos ofendidos, não compreendemos o que aconteceu, o porquê de tantos infortúnios, o sucesso dos imerecidos, o fracasso dos virtuosos, a ausência de justiça, divina e humana, os sorrisos quebrados, as esperanças naufragadas e a gargalhada escancarada dos ladrões. Fomos vítimas, de muitos e de nós mesmos, mas lutamos e continuamos sem querer parar. Quem se respeita não pára. Sentar e esperar não é uma boa opção, só os beatos esperam que algo caia do céu; andar, se necessário, correr, é a melhor forma de chegar a algum lugar.

Estamos no início de outro ano e novas tragédias já nos perseguem desde os primeiros segundos. Acordamos num novo ano com a esperança de que tudo mudou, mas nada mudou, ainda nos arrastamos para fugir do poço. Contudo, temos certeza que o poço ficará para traz e o olharemos em breve de longe, muito longe; o veremos de cima de algum penhasco e diremos orgulhosos Estive ali, estive, não estou mais.

Por fim, descobrimos que somos mais duros que esperávamos, talvez por que vaso ruim não quebre, como dizem os antigos, talvez por que a pancada ainda não foi tão forte, talvez por que simplesmente não quisemos quebrar; ainda temos muito que fazer. E por mais que uma vaca apareça na nossa frente dançando can-can com as patas da frente e cantando Babalú em falsete, nós ainda estaremos aqui; por mais que uma mulher feia com nome de fruta grande ― corresponde a sua preponderante e monstruosa retaguarda ― ganhe milhões nua, dançando e cantando com voz de taquara rachada; por mais que os políticos escondam dinheiro na cueca para preencher um vazio que lá se encontra; por mais que os quarenta anos de hoje sejam os novos vinte ― nem sempre por juventude, mas por acefalia intelectual ―; por mais que ser bom seja ser mau ― nos valores invertidos de hoje ―; por mais que cada povo tenha o governo que merece; por mais que livros de auto-ajuda continuem a ser tratados por incautos como filosofia; enfim, por mais idiota que seja, aos olhos do vendidos, não se deixar levar numa vida de gado, alguns de nós não sabemos desistir.




Imagem: André Kertész, Clock of the Académie Française – Paris, Negative 1929 – 1932, Printed 1950s, Gelatin silver print, 25.1 x 19.7 cm, The J. Paul Getty Museum, Los Angeles, © Estate of André Kertész, 84.XM.193.1. (2 de julho de 1894 - 28 Setembro 1985), fotógrafo húngaro nascido em Andor Kertész, conhecido por suas contribuições inovadoras de composição fotográfica e por seus esforços em estabelecer e desenvolver o ensaio fotográfico.
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[1] NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 79
[2] Heinrich Heine, poeta filósofo do séc. XIX, era conhecido por seu pessimismo e sua sátira afiada. Foi admirado por vários autores como Dostoievski, Nietzsche, Freud e Adorno. A citação acima se refere ao seguinte texto do autor: “Eu tenho a mentalidade pacífica. Meus desejos são: uma cabana modesta, telhado de palha, mas uma boa cama, boa comida, leite e manteiga frescos; em frente À janela, flores, em frente À porta, algumas belas árvores. E se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, me permitirá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos pendurados nelas. De coração comovido eu haverei de perdoar todas iniqüidades que em vida me afligiram. Temos de perdoar nossos inimigos, porém jamais antes de eles estarem enforcados”.
[3] Horácio. A arte poética. In: Aristólteles, Horácio, Longino. A poética clássica. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 60
[4] NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 77
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 88

6 comentários :

  1. Oi, William!!

    Já faz parte da maioria das pessoas de trazer este "kit promessas" em cada início de ano. Se o mundo gira, gira, gira e sempre passa pelo mesmo lugar, talvez seja este nosso filme da vida: viver em "reprises"... Sempre tem o momento de falar de coisas boas, de falar de tragédias e por aí vai... Mesmo não sendo com a mesma intensidade dos anos anteriores, a gente cai na repetição, mas acredito que o fato de esperarmos algo sempre melhor para nós (dependendo do conceito de 'melhor', né? rss), faz com que o novo ano seja novo, ou pareça diferente, pelo menos.

    "Espero" que este ano seja bom para você também, tá? rsss

    Um abraço
    Marcelo.

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  2. William,

    Não entendo muito as chamadas resoluções de ano novo. Como postei em meu blog, só percebi que um ano terminou e outro começou porque tivemos um recesso no meio. Mas o que importa é que resistimos e, ainda mais, persistimos. E assim as coisas andam.

    Abraços.

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  3. Manter a esperança para não perder o gosto pela vida, cultivar o pessimismo para sobreviver e assim vamos andando na corda bamba até a derrocada final.
    Um rexto de peso.
    beijos

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  4. Tua escrita sempre mexe comigo, não dá pra ser indiferente a ela. Essa deixou um gostinho amargo na boca...

    Abraço!

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  5. Will,
    é menino gênio,você foi além do bem e do mal...
    de Nit a Vandré,chorando e cantando,tenho que admitir,realmente que vida de gado!
    e assim caminha a humanidade em ano de eleição...
    bjs,querido.
    Boas energias,
    Mari

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  6. Marcelo, é isso, para muitos uma maneira de acreditar que sempre haverá algo melhor para acontecer. Um abraço!

    Luciano, essa diferença realmente não há, mas muitos julgam vê-la, talvez por necessitarem acreditar que merecem mais e que tudo vai melhorar. Até mais!

    Ariane, desculpe-me fazer você sentir um gosto amargo, mas não haveria amargo sem o doce, e vice e versa. Nem tudo são flores, não é?!

    Mari, este ano veremos tanta gente ruim solícita. Um beijo, corralinda!

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