Esses dias veio-me à memória um fato ocorrido há muito tempo. Eu ainda me encontrava na escola, era aluno do segundo grau, como se dizia na época, e havia um evento em comum todos os meses no meu colégio: o sorteio de uma bicicleta entre os alunos que pagavam a mensalidade em dia.
Eu, ou melhor, meu pai, sempre pagava a mensalidade dentro do prazo, portanto, eu era costumeiramente um dos concorrentes à bicicleta, mesmo que eu não me importasse muito com isso; eu já possuía a minha e não almejava outra. Entretanto, éramos obrigados a todo fim de mês comparecer ao pátio do colégio para assistir ao sorteio entre os bons pagadores.
E foi num desses sorteios que comecei a supor algo estranho: a bicicleta me chamou a atenção. Todos os meses era sorteada uma bicicleta completamente igual às outras: azul, marca Caloi, com varão e garupa. Onde eles compram essas bicicletas? ― eu me perguntava, será que só tem essa cor e esse modelo por lá? Intrigado, certa vez, eu comentei isso com um amigo e ele me disse:
― É verdade, eles sempre trazem uma bicicleta azul, deve ser por causa da cor da escola.
― É, deve ser ― concordei incrédulo.
Mas todo mês aquela cor e aquele modelo me incomodavam. Afinal por que essa paixão por azul, garupa, varão e Caloi? Até que um dia percebi mais um detalhe instigante: os ganhadores, os sorteados, os garotos bons pagadores, contemplados com a bicicleta azul eram todos loiros. Quantos loiros afinal de contas existem na escola? Será possível que só os loiros têm a sorte de ganhar uma bicicleta? É isso mesmo, todos os sorteados haviam sido loiros, desde o primeiro sorteio.
― Ei, Paulo! Já viu que esse garoto que ganhou a bicicleta é loiro? ― perguntei, certa vez ao meu amigo.
― Estou vendo. E o que tem?
― É que o do mês passado também era.
― É mesmo? Que coincidência, hein?
― Bota coincidência nisso, por que o de dois meses atrás também era, e o do outro, e o dos outros quatro meses anteriores.
― Putz! Você tem certeza?
― Ora se tenho!
Era muito loiro para um colégio só, e eu não estudava num colégio suíço. Aqueles sorteios mais pareciam um culto ao loiro.
― Será que se eu pintar o meu cabelo de loiro não terei mais sorte na vida?
― Acho que não ― me respondeu o Paulo.
Pois bem, com esse estranhamento na cabeça, investi-me do personagem de Sir Arthur Conan Doyle e parti em busca de respostas, procurando descobrir quem era o loiro sortudo, por que estava claro para mim que era o mesmo todo mês e não uma legião de dinamarqueses.
Perguntei a todos os alunos a quem tive acesso se conheciam o bom pagador, mas ninguém se lembrava de já tê-lo visto em sua sala; procurei saber com os alunos de outros turnos e a resposta era sempre a mesma:
― Não, nunca o vi.
Mais do que loira, a eterna vitória era conquistada por um fantasma que só aparecia aos nossos olhos nos dias dos sorteios. E por isso eu sonhava como seria bom poder seguir o diretor fora da escola para quem sabe o ver confabulando com o garoto loiro sobre o próximo sorteio, pagando a ele uns vinte reais para se fazer aluno por dez minutos e devolver a bicicleta ganha na saída da escola. Sim, por que era claro que a bicicleta também era a mesma, sempre.
Então comecei a imaginar a cena: certa vez o diretor teve a ideia de estimular a adimplência dos alunos, e para isso imaginou que um brinde seria de bom grado, mas não queria ter que todo mês comprar uma bicicleta nova para um aluno que não fazia mais do que sua obrigação pagando a mensalidade em dia, então disse com seus botões: “Vou repetir a mesma bicicleta todos os meses. Só preciso de um garoto para se fazer passar por aluno, ganhar o prêmio e me devolvê-lo lá fora”. Com essa certeza e imaginação, vi-me um dia desmascarando o diretor ao final de um sorteio.
― E o vencedor é: Jorge Augusto! Venha Jorge receber seu prêmio!
― Com licença, diretor ― esse seria eu. ― Jorge, em que ano você está?
― Ele é aluno do segundo ano ― com certeza me diria o diretor, tentando cortar a minha investigação.
― Sei, sei! Eu também sou, mas nunca vi você aqui.
― É que ele estuda à noite.
― Hummm! Isso é interessante por que nenhum aluno da noite também viu esse garoto antes.
― E como você sabe? ― nessa hora o diretor já estaria nervoso.
― Simples, no mês passado, quando esse garoto ganhou essa mesma bicicleta, eu perguntei a todos os alunos que encontrei se já o conheciam, e ninguém se lembrava dele.
Imagino que a algazarra seria geral. Todos querendo saber que história é essa de mesmo garoto e mesma bicicleta. Mas claro que eu também imaginei que o diretor não deixaria a coisa assim:
― Que conversa é essa de mesmo garoto? O que você quer insinuar, rapaz?
― Não estou insinuando nada, estou dizendo que o senhor sorteia a mesma bicicleta para o mesmo garoto desde o começo dessa encenação; e o que é pior, esse amarelo nem é aluno daqui. Onde foi que o senhor encontrou esse aí, afinal? Hahahaha!
Seria uma cachorrada. Todos gritando, xingando o diretor, chamando-o de ladrão, dizendo que iriam contar aos seus pais, e eu, claro, já teria me retirado para longe e encontrado algum lugar melhor posicionado para assistir ao espetáculo de camarote. Óbvio que eu acabaria discutindo com o diretor depois disso, mas não seria a primeira vez, afinal, já éramos velhos conhecidos devido ao meu brinco – mas isso é outra história, conto depois.
Enfim, apesar da alegria que teria me causado tudo isso, e da certeza que eu tinha de que tudo não passava de uma falcatrua descarada, não desmascarei o diretor porque, pouco tempo depois, os sorteios pararam. Não vi mais o anjo loiro dos infernos nem a bicicleta azul. Talvez o garoto tenha cansado de devolver a bicicleta e resolveu ficar com ela de uma vez. O caso é que eu perdi a chance de dar umas boas risadas e me tornar logo herói ainda naquela época. Mas tudo bem, fui consagrado herói depois, quando ele quis proibir meu brinco, e dei boas risadas também. Porém, como falei antes, isso eu conto depois.
Imagem: Suposto desenho de bicicleta de Da Vinci encontrado n'O Codex Atlânticus, uma coleção de documentos de Leonardo da Vinci constituído por doze volumes.
Gosto muito de seus escritos...
ResponderExcluirEstive aqui.
Abraços angelicais.
Angélica,
ResponderExcluirObrigado por ter vindo aqui. E fico feliz que goste do que escrevo. Venha sempre; gosto de tê-la aqui.
Um beijo, menina bonita!
Nossa! Será que era a mesma bicicleta sempre!! Espertinho esse diretor! Ah, quero saber a história do brinco! Beijus
ResponderExcluirTudo é possível, Luma. Depois falo da saga do brinco. Cada coisa que acontece comigo!(rs!)
ResponderExcluirUm beijo, menina!
William que engraçada essa história...
ResponderExcluirEu queria que vc tivesse desmascarado o diretor.... mas aí vc ia ser demasiado popular no colégio juntando essa história e a do brinco, que alias, estou esperando um post a respeito.
Fernanda:
ResponderExcluirEspero que tenha sorrido um pouco com a história. A do brinco também teve sua graça. Vou contar em breve.
Um beijo, menina!
Will,
ResponderExcluirsempre genial!
gostaria muito de ler a saga do brinco através de sua secretária Eufrásia,saudades
beijos
Boas energias
Mari
Mari,
ResponderExcluirSempre gentil (rs!)
Sei que você quis dizer Jefrésia. Cuidado, ela é meio bruta, pode ficar com raiva se a chamar pelo nome errado. Mas vou ver se ela quer falar sobre o meu brinco.
Um beijo!
Pedalei tanto na bicicleta de da vinci que cheguei aqui!(rs)coisas da internet... e o brinco??
ResponderExcluirVoltarei
Lais
Obrigado, Laís. Sempre gostei de bicicletas, principalmente por que levam e trazem pessoas.
ResponderExcluirVolte sempre!
Olá William!
ResponderExcluirSinto falta de vir aqui mais vezes, enfim, o que consigo ler me basta para continuar visitando e apreciando. Gosto muito dessas histórias da vida que bem podem dar um belo texto ou até um bom livro, não é?
Não é fácil nos sentirmos ludibriados e mantermos a postura diante de tamanha safadeza, mas, como pude notar, boas coisas também podem advir das ruins. E, mesmo que o trocadilho seja ingrato, arrisco dizer que viver é como andar de bicicleta, nunca esquecemos...rs
Bjins e até mais!
Obrigado, Jô. É sempre bom ter você por aqui.
ResponderExcluirUm beijo!