A educação, a erudita e promissora educação. Tenho andado um tanto saudosista; tenho lembrado coisas que há muito não me ilustravam a memória. Tenho pensado nos meus tempos de estudante. Quantos de nós aprendemos tanto nos colégios e faculdades, e quantos, em maior número, nada aprenderam? Quantos professores mal-humorados nos torraram a paciência e tantos outros nos fizeram rir? Ah, estranhos tempos que não voltam mais.
Isso tudo me fez lembrar uma professora que tive na faculdade, numa cadeira chata, chatíssima. Por mais que se goste do curso que escolheu, há sempre uma cadeira chata para questionar a nossa escolha. Essa era de chorar na calçada com a cara lambida por um cachorro sarnento depois de ver sua namorada beijando o cara mais imundo da paróquia. Quanto à professora, bem... ela não era chata, verdade seja dita, entretanto possuía uma voz de gralha esgoelada que tinha como único mérito não permitir aos alunos o cultural cochilo que alguns sempre insistiam em manter nas salas de aula; talvez por tradição. A verdade é que, coitados, quem conseguiria dormir com uma voz daquelas azucrinando-lhe os ouvidos, cutucando com agulha enferrujada os seus tímpanos? Nem os já tarimbados e tradicionalistas Alunos do Sono da Aula conseguiam.
Apesar dos pesares, a professora era inteligente, sem dúvida, contudo, suas inquirições estridentes, suas interjeições oriundas da gasguitolândia eram de rachar, rachar ouvidos e vitrais da Capela Cistina. Diante desses momentos operísticos desafinados tudo o que eu desejava era sair correndo, mas possuía um medo terrível do ridículo. Na verdade, isso não é verdade, eu não tinha medo do ridículo. O certo é que eu iria adorar sair correndo de porta a fora com as mãos sobre meus ouvidos feito louco que viu fantasma. O que me segurava era o risco de ser reprovado na cadeira.
Nós a tínhamos como tema preferido das conversas e subversões linguais. Sempre que ela entrava na sala surgiam os comentários mais doces do mundo:
― Lá vem a taquara rachada!
― Para a próxima aula vou trazer uns fones de ouvidos daqueles que engolem os ouvidos inteiros.
― Alguém esfaqueie essa mulher, por misericórdia!
― Atenção, classe! ― essa era ela.
― Vala-me, minha nossa senhora protetora dos ouvidos sofridos do sétimo dia! Que diabo é isso?! ― esses éramos nós. Religiosos ou não, por via das dúvidas, muitas vezes, recorria-se aos santos nos dias de duas aulas seguidas, recorria-se até mesmo a Deus, diretamente, por que o assunto era sério. Mas esse Deus por quem todos clamam nunca nos ajudou. E hoje ainda me pego às vezes, em um lugar qualquer, ouvindo a voz dela me chamar:
― Wiiiiilliam, quer ler o texto pra nós?
― Pede ao cão pra ver se ele lê! ― eu gostaria de dizer, mas não dizia, para não ser reprovado.
Foi um semestre duro, duríssimo, mas meus tímpanos escaparam pouco avariados. Restou um trauma, claro, de certos pássaros e mulheres que racham as palavras quando falam. Efeitos colaterais. O importante é que fui aprovado na cadeira. Portanto, um grande abraço professora, mas não tão grande assim que o saudosismo é passageiro e já está indo embora.
Imagem: Jean-Baptiste-Siméon Chardin, A jovem professora, 1736. Um dos mais célebres pintores do barroco francês. Tornou-se conhecido por suas naturezas-mortas, representações de frutos e animais. O quadro acima está exposto na Galeria Nacional de Londres, famoso museu da Grã-Bretanha.
Minha nossa, William, fiquei até imaginando como seria a voz da dita cuja...
ResponderExcluirGostei da crônica, bem espirituosa e divertida (para quem não estivesse naquela sala de aula, claro!)
Abraços!
Cristine: uma voz doce; doce azedado!
ResponderExcluirQue bom que gostou. Obrigado pela leitura!
Um abraço!
Williammm
ResponderExcluirSaudade de vc...
Muito boa a crônica...
Fez-me lembrar quando eu estava na antiga quinta série...rs
Eu tinha uma professora de geografia que me dava cólicas estomacais em somente saber que teria aula dela...
Obrigada pela leitura de suas obras magníficas!!!
Beijos doces e apimentados!
É...Mas quando passa a gente sente falta até dos piores professores...rs rs
ResponderExcluirAdorei a crônica, William!E o blog também, estou te seguindo.
Estamos juntos na antologia H2Horas, da Cronópios. :)
Abraços
Aline, também estou com saudades de você, corralinda! Obrigado por vir aqui. Um beikjo, menina!
ResponderExcluirCamila, minha colega de trabalho. Quanto a professora, como falei, eu gosto muito dela, principalmente quando ela fala baixo. Um abraço!
Belo texto
ResponderExcluirNão consigo acessar ! Queria falar sobre a beleza do texto !
ResponderExcluirQuem nunca ouviu uma voz dessa,que atire a primeira pedra...
ResponderExcluirsaudades,M.G
bjs
Mari
Também sinto saudades, menina. Estou tentando, tentando muito, consertar as coisas por aqui. Vou conseguir.
ResponderExcluirUm beijo!
Lial, adorei seu humor. A professora me lembrou vàrias que tive na escola e faculdade. Ri bastante com seu texto. Para uma senhora prestes a completar 50 anos, rir é um bom remédio para o que não tem remédio.
ResponderExcluirVou lendo seus texto aos poucos e com prazer.
Um abraço,
Cybèle
Cybèle, rir é mesmo bom, por isso,apesar de escrever poemas de cunho mais profundo, filosófico, talvez crônicas do homem, como me disse Affonso Romano de Sant'Anna, eu não abro mão do humor em outros textos. Porque nem só de profundidade vive o homem.
ResponderExcluirUm abraço, e obrigado pela visita!