14/07/2009

julho 14, 2009
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É incrível o silêncio que aflora depois de uma chuva à noite, parece que a cidade se cala, que todos dormem e só eu estou acordado. Uma brisa suave e fria varre o tempo e cai sobre a pele de quem está ao seu alcance, o mundo parece tranqüilo, parece melhor.

Nesse momento uma libélula está pousada na minha sala, de onde saí há pouco para vir aqui e ter a idéia de escrever este relato. Ela está lá, quieta, imóvel, além do mundo. Ela poderia estar voando, mas resolveu que na minha sala era onde queria ficar. Deve estar se defendendo da chuva, ela não resistiria à força da água; esses insetos sempre pressentem o clima antes de nós, por isso está na minha sala desde antes da chuva dar sinal de que viria.

Acredito que ela não gosta de TV, já que está ligada e ela nenhuma vez virou-se para ver o que está sendo transmitido. Ela quem? A libélula, quem seria? Talvez seja um inseto intelectualizado e não tem tempo para perder vendo filmes na TV, prefere pensar, criar seus próprios personagens em sua mente – se é que ela tem mente. Maluquice, eu sei. Deve ser o efeito da Sonata nº 3 de Chopin que escuto agora; me deixa tão tranqüilo que entro em êxtase.

Depois que a chuva acabou eu vim para cá ouvir o polonês. Deixei o inseto lá, na sala. Talvez ele gostasse de vir aqui a minha biblioteca ouvir um pouco de música. Maluquice de novo, sei, sei, eu e o inseto ouvindo Chopin e, de repente, conversando sobre pelo que passou a Polônia, anos depois da morte do grande músico, comentando o filme O pianista e o Noturno que é usado como trilha sonora.

Não, eu não estou drogado, é que já pensou como seria interessante saber o que se passa pela cabeça de um inseto, o que ele pensa, como ele ver o mundo enquanto voa. Tudo bem, eu poderia perguntar isso a uma andorinha ou outro pássaro qualquer, mas não vamos desrespeitar a libélula, ela tem direito a dar seu depoimento. Concordo, isso parece uma das histórias expressionistas de Kafka, mas se parece, então é ótimo, afinal, Kafka é ótimo.

Etudes nº 1. Chopin! Começamos a ouvir agora as Etudes; Nelson Freire toca bem. A chuva se foi, mas a libélula não. Que nome redondo, libélula. Quando falamos parece que nossa língua está dando voltas sobre ela mesma.

Gostaria de saber por que a chuva parou. Se eu soubesse fazer a dança da chuva... Uma vez ouvi dizer que a dança da chuva somente funciona porque os índios que a dançam, dançam até começar a chover. Já imaginou um índio dançando durante meses a fio até que a chuva irrompa do céu?! Que nenhum índio me ouça, poderia chamar o Pajé para me enfeitiçar, ahahahaha, “Você num respeita os nosso costume, você é homem rúin, mim vai enfeitiçar você, coisa rúin”. De onde eu tiro essas maluquices? Por que a chuva não volta? Quer saber?! Vou ler alguma coisa, chega de escrever por hoje. Quem sabe eu não leia um pouco de Kafka, já que falei nele.

A chuva está voltando; será Kafka ao som da chuva. Daria até um belo título de canção, “Como se chama esta música?”, Kafka ao som da chuva. Talvez uma música minimalista como as de Ärvo Pärt; são todos do mesmo lado diferente da Europa, Kafka, checo, Pärt, estoninano, nada mais justo. Mas com quem mesmo eu estou falando? Faz quanto tempo que eu disse que iria parar de escrever por hoje? E pra quem eu disse? Se eu morasse vizinho a um manicômio a essa altura não moraria mais vizinho, moraria dentro dele. Etudes nº 11.

Um vinho cairia bem, agora: chuva, Chopin, vinho tinto e uma mulher; uma mulher combinaria muito bem com tudo isso; uma mão na taça e a outra acariciando seu braço, suas costas, seu decote, sua... Onde está a Sabrina numa hora dessas? Que decote, que pele, que peitos, que vinho delicioso escorrendo por eles... Pronto! Agora quero fazer sexo, sob a chuva, ouvindo música de piano e tomando vinho. E o que adianta querer, se não há mulher alguma aqui? Vou dizer uma coisa, viu... Aliás, não vou dizer coisa alguma, não há ninguém aqui, estou só, só e descrevendo o momento feito o Benjy, o demente de O som e a fúria, de Falkner. Three new etudes nº 1.

A chuva voltou de uma vez, que bom. É melhor eu ir mesmo, não posso deixar Kafka me esperando, ele é meio sentimental, por causa daqueles problemas com o pai autoritário que sempre teve. Ahahaha, calma! Eu não estou delirando, é só uma brincadeirinha para descontrair, descontrair a mim e todos os meus outros eus; como disse Vitangelo Moscarda, personagem de Pirandello, somos vários eus, um para cada pessoa que nos olha, então estou descontraindo todos os meus eus. Porém, é melhor parar de tanta descontração, antes que se transforme em loucura e num caso crítico de verborragia solitária diluviana. Gostou do nome? Sou criativo. Chega! Já chega! Onde está a libélula? Deve estar lá na sala. Perdeu a chance de vir aqui ouvir um pouco de música. Azar o dela. Agora o disco já está acabando. Chega! Meus eus?! Já me vou. Tchau! Three new etudes, nº 3...



Imagem: Oswaldo Goeldi, A chuva.

6 comentários :

  1. Olá William,
    Queria te dizer alguma coisa,mas não direi coisa alguma...
    Sorte tem essa libélula!
    Maravilhoso!
    bj
    Mari

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  2. Mari:

    Obrigado, minha linda. Sempre gentil comigo.

    Um grande beijo!

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  3. Michelle:

    Obrigado pela dica, vou lá dar uma olhada.

    Um beijo, menina!

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  4. Não sei se saberia ser a Sabrina, mas creio que ela seria feliz em estar ai.

    Maria

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  5. Olá William! Cheguei a esse post por meio do recente "Mensagem pra mim!" e é difícil entender como alguém desperdiça o seu tempo e o dele escrevendo bobagens tamanhas! O talzinho (anônimo: ele/ela? Desconhecido, enfim) não deve ter ouvido nunca que é "melhor o silêncio do que a falta do que dizer"?
    Gostei demais dessa crônica, conseguiu captar tantos pensamentos que pululam em nossas cabeças em dias assim ou momentos, que sejam. Encadeá-los sem que se tornem mera maluquice é para quem sabe (escrever) e apreciar a leitura é para quem sabe (ler), então, voltando ao que me trouxe, felizmente, até aqui, há pessoas que não sabem nem um, nem outro...fazer o quê?
    Bjins e até mais!

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