29/11/2011

novembro 29, 2011

Pedro Maciel produz romances nada convencionais. Não espere encontrar em seus livros as formas tradicionais das narrativas literárias: diálogos entre personagens, muitos ambientes, histórias paralelas, começo, meio e fim. Não há nada disso em Previsões de um cego (2011) nem em seus livros anteriores; tornando-se difícil enquadrá-los em algum gênero literário – o que já mencionei na resenha de Como deixei de ser Deus (2009).

Mal comparado, a obra de Pedro Maciel possui certas semelhanças com Água viva, de Clarice Lispector: um personagem divagando sobre a vida, sobre seu estar no mundo, “um romance sem romance”, como disse Lucia Helena¹(1998), usando Barthes. Porém, no texto de Maciel, o discurso é ainda mais fragmentado. São frases soltas em meio a outras que nem sempre dialogam entre si, além de páginas que, muitas vezes, têm apenas algumas poucas linhas, como podemos ver na imagem da “página 19”, logo abaixo.
Imagem da página 19 do livro.

Mantendo o estilo e a forma de seus livros anteriores – inclusive mantendo o texto somente em páginas ímpares –, um personagem narra seus pensamentos, aflições, percepções e deduções sobre si e o mundo que o cerca, “Sobrevivo de esquecimentos” (p. 7), diz ele, um arqueólogo, segundo lhe disseram, aprisionado num possível hospital psiquiátrico onde escreve O livro dos esquecimentos, o que é conveniente, já que não sabe quem é nem de onde veio.

Talvez por isso sua narrativa seja tão obscura, repleta de frases repetidas, soltas, feito fragmentos jogados como ideias que surgem abruptas, e frases contraditórias, afirmando, negando, e reafirmando a mesma coisa continuamente, como a repetida “Perdi a noção do espaço, mas não perdi a noção do tempo”, encontrada em várias páginas, e “Vivo para esquecer e não para lembrar” (p.51, grifos do autor²), contrariando a “Vivo para lembrar e não para esquecer” (p. 59), mas reafirmada em “Será que estou além do meu tempo, já que vivo para esquecer e não para lembrar?” (p. 75), como também os jogos de palavras, muitas vezes com o mesmo radical e/ou prefixos, fazendo diversas associações aliteradas que dão força às frases, ao mesmo tempo em que revelam o estado frágil da mente do narrador: “Estou deslumbrado com minhas deslembranças” (p. 39), “Pode-se dizer que minhas sombras nunca assombraram as outras pessoas” (p. 71) e “Todo dia as minhas sombras desassombram o meu tempo.”³ (p. 99).

Assim, no decorrer do livro, encontramos várias afirmações sobre a memória, o tempo, o passado, o futuro e, principalmente, as sombras, que estão por toda a narrativa e são suas companheiras – além do paciente do quarto ao lado, a única pessoa com quem o protagonista parece conversar: “O paciente do quarto ao lado diz que não sou esquecido, mas que estou esquecido” (p. 51).

As sombras são alegoria do esquecimento, do embotamento em que vive sua mente, são o enigma da sua vida, o invólucro do seu passado: “Será que as sombras são apenas o meu tempo passado antes de mim?” (p. 25), “Para muitos, a sombra é a cara da morte, mas, para mim, a sombra é apenas a máscara do meu rosto.” (p. 37) e “Não adiante abrir os olhos porque não vejo ninguém além das minhas sombras.” (p. 55).

Contudo, mais à diante, as sombras ganham um tom erótico: “Todo dia as minhas sombras desassombram-se para fazer sexo entre elas em plena luz do dia, mas ninguém percebe a orgia.” (p. 37) e “Ontem voltei a trepar com as sombras das enfermeiras atrás do pátio do Sol.” (p. 77).

Nesse momento, as sombras de Maciel lembram as sombras de Affonso Romano de Sant’Anna, em O homem e sua sombra (2006) – livro sobre o qual já publiquei, aqui e no Cronópios, uma resenha intitulada Cuidado com sua sombra – que traz poemas divertidíssimos, mostrando sombras em diversas situações diferentes, com comportamentos bastante humanos, inclusive eróticos. Senão vejamos: “Quando o homem com sua amada deitava/ era a sombra que gozava.” (p. 25), ou “Um homem pensou divorciar-se/ de sua sombra/ posto que ela o enganava.// Fingia estar ao seu lado/ mas com outro se aninhava.” (p. 41), e por fim, “Uma sombra disse ao dono/ - Vou à festa, quero orgia./ se eu fosse você/ não me esperaria” (p. 65). Nos textos dos dois autores, as sombras são dotadas de vida própria, diferenciando-se apenas pelo tom humorístico de Sant’Anna.

Como em seus romances precedentes, não há linearidade narrativa, nem ação ou história a ser contada, além de ter um único personagem – o do quarto ao lado é apenas um subpersonagem, tendo suas falas reproduzidas pelo protagonista –, o que coloca a força dramática unicamente no monólogo interior do seu personagem, através de frases como “Eles dizem que perder a memória é como estar enterrado vivo.” (p. 19), “Há dias em que me desperto, mas não sei se estou sonhando ou morrendo.” (p. 27) e “Todo dia presencio a minha ausência. Muitos me olham, mas não me enxergam.” (p. 51).

Enfim, o personagem cego, que acredita ver além e a sua volta, de uma forma superior a que os olhos podem ver, sobrevive num mundo que parece suspenso entre vários tempos – presente, passado e futuro – e dividido entre lembranças, esquecimentos e projeções para o amanhã, vivendo seus dias sem saber se está acordando ou morrendo.



_______________
¹Lucia Helena. Professora titular de Literatura Brasileira da UFF, e autora de Musa nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector, entre outros livros.
²Todos os negritos são do autor.
³Todos os grifos dessas citações são meus.


Referência Bibliográfica:

HELENA, Lucia. In: LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. (Orelha do livro)

MACIEL, Pedro. Como deixei de ser Deus. Rio de Janeiro: Top Books, 2009.

MACIEL, Pedro. Previsões de um cego. São Paulo: Leya, 2011.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O homem e sua sombra. Porto Alegre: Alegoria, 2006.

0 comentários :

Postar um comentário

Voltar ao topo