Pedro Maciel produz romances nada convencionais. Não espere encontrar em seus livros as formas tradicionais das narrativas literárias: diálogos entre personagens, muitos ambientes, histórias paralelas, começo, meio e fim. Não há nada disso em Previsões de um cego (2011) nem em seus livros anteriores; tornando-se difícil enquadrá-los em algum gênero literário – o que já mencionei na resenha de Como deixei de ser Deus (2009).
Mal comparado, a obra de Pedro Maciel possui certas semelhanças com Água viva, de Clarice Lispector: um personagem divagando sobre a vida, sobre seu estar no mundo, “um romance sem romance”, como disse Lucia Helena¹(1998), usando Barthes. Porém, no texto de Maciel, o discurso é ainda mais fragmentado. São frases soltas em meio a outras que nem sempre dialogam entre si, além de páginas que, muitas vezes, têm apenas algumas poucas linhas, como podemos ver na imagem da “página 19”, logo abaixo.
Mantendo o estilo e a forma de seus livros anteriores – inclusive mantendo o texto somente em páginas ímpares –, um personagem narra seus pensamentos, aflições, percepções e deduções sobre si e o mundo que o cerca, “Sobrevivo de esquecimentos” (p. 7), diz ele, um arqueólogo, segundo lhe disseram, aprisionado num possível hospital psiquiátrico onde escreve O livro dos esquecimentos, o que é conveniente, já que não sabe quem é nem de onde veio.
Talvez por isso sua narrativa seja tão obscura, repleta de frases repetidas, soltas, feito fragmentos jogados como ideias que surgem abruptas, e frases contraditórias, afirmando, negando, e reafirmando a mesma coisa continuamente, como a repetida “Perdi a noção do espaço, mas não perdi a noção do tempo”, encontrada em várias páginas, e “Vivo para esquecer e não para lembrar” (p.51, grifos do autor²), contrariando a “Vivo para lembrar e não para esquecer” (p. 59), mas reafirmada em “Será que estou além do meu tempo, já que vivo para esquecer e não para lembrar?” (p. 75), como também os jogos de palavras, muitas vezes com o mesmo radical e/ou prefixos, fazendo diversas associações aliteradas que dão força às frases, ao mesmo tempo em que revelam o estado frágil da mente do narrador: “Estou deslumbrado com minhas deslembranças” (p. 39), “Pode-se dizer que minhas sombras nunca assombraram as outras pessoas” (p. 71) e “Todo dia as minhas sombras desassombram o meu tempo.”³ (p. 99).
Assim, no decorrer do livro, encontramos várias afirmações sobre a memória, o tempo, o passado, o futuro e, principalmente, as sombras, que estão por toda a narrativa e são suas companheiras – além do paciente do quarto ao lado, a única pessoa com quem o protagonista parece conversar: “O paciente do quarto ao lado diz que não sou esquecido, mas que estou esquecido” (p. 51).
As sombras são alegoria do esquecimento, do embotamento em que vive sua mente, são o enigma da sua vida, o invólucro do seu passado: “Será que as sombras são apenas o meu tempo passado antes de mim?” (p. 25), “Para muitos, a sombra é a cara da morte, mas, para mim, a sombra é apenas a máscara do meu rosto.” (p. 37) e “Não adiante abrir os olhos porque não vejo ninguém além das minhas sombras.” (p. 55).
Contudo, mais à diante, as sombras ganham um tom erótico: “Todo dia as minhas sombras desassombram-se para fazer sexo entre elas em plena luz do dia, mas ninguém percebe a orgia.” (p. 37) e “Ontem voltei a trepar com as sombras das enfermeiras atrás do pátio do Sol.” (p. 77).
Nesse momento, as sombras de Maciel lembram as sombras de Affonso Romano de Sant’Anna, em O homem e sua sombra (2006) – livro sobre o qual já publiquei, aqui e no Cronópios, uma resenha intitulada Cuidado com sua sombra – que traz poemas divertidíssimos, mostrando sombras em diversas situações diferentes, com comportamentos bastante humanos, inclusive eróticos. Senão vejamos: “Quando o homem com sua amada deitava/ era a sombra que gozava.” (p. 25), ou “Um homem pensou divorciar-se/ de sua sombra/ posto que ela o enganava.// Fingia estar ao seu lado/ mas com outro se aninhava.” (p. 41), e por fim, “Uma sombra disse ao dono/ - Vou à festa, quero orgia./ se eu fosse você/ não me esperaria” (p. 65). Nos textos dos dois autores, as sombras são dotadas de vida própria, diferenciando-se apenas pelo tom humorístico de Sant’Anna.
Como em seus romances precedentes, não há linearidade narrativa, nem ação ou história a ser contada, além de ter um único personagem – o do quarto ao lado é apenas um subpersonagem, tendo suas falas reproduzidas pelo protagonista –, o que coloca a força dramática unicamente no monólogo interior do seu personagem, através de frases como “Eles dizem que perder a memória é como estar enterrado vivo.” (p. 19), “Há dias em que me desperto, mas não sei se estou sonhando ou morrendo.” (p. 27) e “Todo dia presencio a minha ausência. Muitos me olham, mas não me enxergam.” (p. 51).
Enfim, o personagem cego, que acredita ver além e a sua volta, de uma forma superior a que os olhos podem ver, sobrevive num mundo que parece suspenso entre vários tempos – presente, passado e futuro – e dividido entre lembranças, esquecimentos e projeções para o amanhã, vivendo seus dias sem saber se está acordando ou morrendo.
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¹Lucia Helena. Professora titular de Literatura Brasileira da UFF, e autora de Musa nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice Lispector, entre outros livros.
²Todos os negritos são do autor.
³Todos os grifos dessas citações são meus.
Referência Bibliográfica:
HELENA, Lucia. In: LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. (Orelha do livro)
MACIEL, Pedro. Como deixei de ser Deus. Rio de Janeiro: Top Books, 2009.
MACIEL, Pedro. Previsões de um cego. São Paulo: Leya, 2011.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O homem e sua sombra. Porto Alegre: Alegoria, 2006.
Referência Bibliográfica:
HELENA, Lucia. In: LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. (Orelha do livro)
MACIEL, Pedro. Como deixei de ser Deus. Rio de Janeiro: Top Books, 2009.
MACIEL, Pedro. Previsões de um cego. São Paulo: Leya, 2011.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O homem e sua sombra. Porto Alegre: Alegoria, 2006.
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