― Ei! Aonde você vai, rapaz? Vem aqui, vem me ler! Mas por que esse povo foge tanto de mim? Tá com medo, ô mané? Eu sou tão bonito... Olha só essa capa que beleza, olha essas páginas, e o cheirinho, eu adoro esse meu cheirinho de livro... Por que o mané não quis me ler? Vai ver que é mané mesmo. Não sabe o que tá perdendo ouviu, seu besta?!
Triste, deu quatro passos, sentou-se na calçada e se calou. Ele era um desses livros que são deixados pelos bancos de praça dos parques na esperança de que muitos os peguem e leiam, criando assim mais leitores, levando o livro talvez àqueles que nunca tiveram a oportunidade de lê-los. Mas esse não teve sorte, deitado ali, naquele banco, há oito dias e nenhum leitor.
― Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire; não é assim que dizem os derrotados, os fracassados?! ― lamentava sua sorte. ― Aonde esse mundo vai descambar? Opa! O que que é isso? Vira esse carro pra lá! Vira! Vira! Não vem não, não vem não! Olha a poça d’água aí, rapaz! Olha a poça! Olha a poça! Olha aí, me molhou todo, o desgraçado! Não me viu aqui não, ô barbeiro? Eu sou um livro importante sabia?! Você pode ter estragado o couro da minha capa, troglodita!
Mas ninguém o ouviu. E o motorista, ah, o motorista já havia dobrado a segunda esquina; nem tomou conhecimento da existência daquele pequeno objeto com capa de couro marrom e letras douradas que diziam Turguêniev – Pais e Filhos; muito menos viu que o miolo daquele livro era em papel altaprint 90 g/m², liso, branco, prazeroso de se pegar e que agora estava encharcado.
― E agora quem vai me querer? ― continuou, o ignorado. ― Ah mundo cão! Ninguém vai olhar para mim. Por que me mandaram para esse país? Por quê? Ah, santo patrono dos livros inválidos, o que te fiz? Ó, por que não me fez ser concebido num mundo de homens e livros, como pregou Monteiro Lobato? Por que me deixou nesse mundo de homens pios? Tu és cruel, tu és muito cruel. Olha para mim ― e abriu suas páginas, como se abrisse braços ―, olha para mim, santo desleal, eu só quero divertir, ensinar... Por que eles não me querem, santo meu? E vós, ó Pai, o que aconteceu com o rogai por nós? Por que não afasta de mim esse cálice, Pai, e me dá um pouco de paz?
Triste é a vida de quem muito tem a oferecer e poucos existem para receber. Coitado, ali, de volta ao banco, deitou-se e chorou como os livros choram: em silêncio. E por um bom tempo, nenhum passante parou para resgatá-lo, até que, muito tempo depois:
― Ei, ei, quem é você, quem é você? ― perguntou o livro, assustado.
― Olha só que livro mais bonito! ― disse o velhinho que o manejava. ― Mas está todo molhado. Quem será que fez isso com você?
― Finalmente alguém reconhece o meu valor! ― disse, já com um sorriso estampado na capa; mas o velhinho não o ouviu, claro, os humanos e os livros só se entendem por palavras mudas. Contudo, de alguma forma, sem ler uma frase do livro, além de seu título, o velhinho se alegrou com o achado, acariciou o volume nas mãos e o levou consigo.
― Vou cuidar de você ― disse o simpático homem enquanto caminhava rumo a sua casa. ― Vou limpá-lo, vou tratá-lo no meu atelier e você vai ficar novinho. Você vai ver!
― Ah, finalmente alguém sensível, finalmente... Espera um pouco! Eu não já conheço o senhor? O senhor não é aquele bibliófilo famoso? O senhor é José Mindlin, não é?! Ô, meu Deus, obrigado, obrigado, senhor, eu estou salvo!
Como era de se imaginar, o velhinho não respondeu, nem o de baixo, nem o de cima; mas o de baixo caminhava feliz para casa, agora com mais um filho adotivo debaixo do braço.
Imagem: Serge Block, s/d.
Esse livro teve sorte! Olha só quem foi encontrá-lo...
ResponderExcluirGostei do conto, bem criativo. Pena que tantos livros bons ficam empoeirando sem que sejam devidamente apreciados.
Abraço!
Obrigado por estar sempre por aqui, Cristine! Fico sempre feliz que goste dos meus textos.
ResponderExcluirUm abraço!
Muito bom, William, parabéns. Terminar um dia com um final feliz assim, é um presentão!
ResponderExcluirUm abraço.
Marcelo.
Willian,
ResponderExcluirEu também gostei muito dos seus textos. Ésum cronista inteligente, sensível e criativo. Comno poeta, além dos adjetivos anteriores és também intenso, forte e marcante. Parabéns. Gostaria de convidá-lo a visitar meu blog http://emaranhadorufiniano.blogspot.com e o de meu grupo http://po-de-poesia.blogspot.com
Seus comentários serão muito bem vindos.
Grande abraço
Obrigado, Márcio, por me visitar e por seus elogios. Fico feliz com isso. Pode ter certeza que o visitarei também.
ResponderExcluirUm grande abraço!
Marcelo, obrigado pela visita e que bom que gostou.
ResponderExcluirUm abraço!