Ultimamente tenho observado a delicadeza humana e como é linda. Hoje em dia essa delicadeza tem estado tão presente na sociedade, no nosso país, que até mesmo os cavalos já têm permissão para trafegar em ônibus por nossas cidades. Isso sim é uma evolução.
Com certeza muitos de vocês já tiveram a oportunidade de ver um desses cavalos que andam por aí em coletivos. Normalmente são delicados como os aqueles cruzam os corredores dos ônibus empurrando, sem cerimônia, os passageiros que por ali estão estacionados ao lado dos bancos, e quando algum passageiro reclama que foi empurrado, o nosso cavalo batizado, este ser gentil, com toda a sua desenvoltura social, olha para o reclamante e docemente se desculpa:
― Ah! Vai te lascar! Quem manda ficar na frente?!
É mesmo comovente ver tanta finura. Também há as senhoras educadas e gentis que acertam suas bolsas um pouco grandes ― normalmente capazes de caber um garoto de dez anos dentro ― na cabeça de cada um dos passageiros que se encontram sentados ao lado do corredor, como numa espécie de Pinball. E suas respostas, se alguém tem a audácia de reclamar dessas marteladas tão sutis, são sempre algum adjetivo agradável:
―Quem manda ter um cabeção desse tamanho!
Não posso me esquecer de outras que, com bolsas semelhantes, se colocam do lado de passageiros, também nos bancos, e ficam ali, como quem não quer nada enquanto suas bolsas empurram a cabeça do coitado sentado. Em poucos minutos este já sofre de torcicolo e tem a face queimando. E é justamente nesse momento que ele faz a grande besteira de tocar no braço da proprietária do saco de dormir e avisá-la que sua bolsinha está empurrando seu rosto:
― Com licença, senhora: sua bolsa está batendo no meu rosto.
― E o que você quer que eu faça, quer que eu jogue a bolsa fora? Marmenino! Num to dizendo mermo! ― com o erre imaginário bem arrastado.
É quase uma declaração de afeto. A verdade é que onde há bolsa grande há dor.
Eu também já fui agraciado com um desses momentos ímpares ― hoje já não tão ímpares assim. Certa vez, estava numa parada de ônibus, eu e três moças, naquela expectativa animadora de quem espera um coletivo, quando finalmente o coletivo veio. Por coincidência, eu e as moças esperávamos o mesmo ônibus. Ficamos bem felizes por ele ter vindo logo, não havíamos esperado nem sequer cinqüenta e cinco minutos. Ônibus parado, fomos para a porta; contudo, a vida nem sempre é fácil: já diante da porta de entrada do veículo, cedo a passagem às três moças ― por que sou um cavalheiro, e não por que elas eram extremamente lindas, nem percebi isso, na verdade:
― Por favor, entrem!
― Obrigado, mas pode entrar.
― Vocês primeiro.
Quando:
― Sai da frente! Povo mais abestado! Ficam aí de nhenhenhém¹. Por que não entram logo?! ― disse um tribufu saído não sei de onde, mas indo para onde eu sei, o nosso ônibus, enquanto nos empurrava e tomava a frente da porta.
Foi algo tão sutil que ficamos assim, digamos, imóveis. Até aquele dia eu não sabia que o pé grande tinha uma filha. As moças, com certeza, tinham a pretensão de chegarem a suas casas sem escoriações, mas nem sempre se pode ter tudo. As três pareciam ter avistado um monstro comedor de moças, num bom sentido ― se é que existe bom sentido em comer alguém, acho que depende do ponto de vista de quem é comido. Mas deixando a comilança pra lá, foi realmente uma fonte de orgulho, ver aquela criatura cavalar, trotando pra entrar antes de todos no coletivo, como se estivéssemos todos lutando por nossas vidas, fugindo de algum exército mercenário sedento por sangue de inocentes do terceiro mundo. Jamais vou esquecer aquela égua impuro-sangue trotando. Quanta originalidade! Uma perfeita demonstração de que nem tudo está perdido, afinal, como disse Humphrey Bogart para Ingrid Bergman, em Casa Blanca: “nós sempre teremos Paris”.
E ainda dizem por aí que não evoluímos ― com todo respeito aos eqüinos, aqueles de quatro patas.
Imagem: Franz Moriz Wilhelm Marc, A Torre dos Cavalos Azuis, 1913. (Pintor alemão expressionista. Esse quadro está desaparecido).
*Texto originalmente publicado no site da TV Verdes Mares, em 29 de março de 2004, e no jornal O Povo, em 03 de abril de 2004.
¹UM MONENTO CULTURAL: "Nhenhenhém" vem do tupi "nheê nheê nheê" e significa "falar, falar". No Brasil virou sinônimo de "resmungo" ou de falatório interminável.
Ótima crônica, William; fina ironia para cavalos não tão finos, e infelizmente tão frequentes por aí.
ResponderExcluirCoitadinhos dos equinos de quatro patas, que são mais gentis que essas bestas citadas por você.
Grande abraço!
Encontrei seu blog, William. Agora sei o caminho.
ResponderExcluirLetícia:
ResponderExcluirQue bom. Seja bem vinda!
Cristine:
É pena termos que merter os cavalos nisso, eles nem sabem que os usamos como adjetivo pejorativo.
Um abraço, menina!
que bom ler quem sabe fazer!
ResponderExcluirLarissa: sempre gentil. Obrigado!
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