20/12/2011

dezembro 20, 2011
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Era Natal, quer dizer, quase. Na verdade era dia 19 de dezembro, e Jeovando, que, segundo seus pais, significava Jeová andando, já não se aguentava mais de vontade de perguntar ao seu pai se já havia lhe comprado o presente, “Pergunto ou não pergunto? Será que ele vai ficar com raiva se eu perguntar?”, questionava-se o menino de dez anos.

Não aguentou, “Vou perguntar!”, e perguntou:

― Pai!

― Sim, Jeovandinho ― nome carinhoso pelo qual era chamado.

― Pai... éééé... bem... o senhor já comprou o meu presente? ― perguntou entre dentes.

― Que presente? ― disse o pai, sem tirar os olhos do jornal que lia.

― O meu presente de Natal, pai!

― Hum! Mas não seria Jesus quem deveria ganhar o presente de Natal? ― tentou o pai, achando que essa seria uma boa hora para ensinar algo ao filho (os pais algumas vezes são tão ingênuos).

― E quem é esse? ― largou o garoto com olhos de espanto. E indignado completou com as mãos na cintura: ― Por que esse daí merece mais do que eu?

― Como assim “esse daí”? ― agora o espanto era do pai. ― Você não sabe quem é Jesus?

― Eu não! ― disse numa espécie de soluço amedrontado. ― Ele é amigo do senhor?

― Jeovando Moisés Gomes de Carneiro Bezerra Neto ― o pai sempre falava o nome completo do filho em momentos de ebulição raivosa ―, você está brincando comigo?

“Ih, eu disse alguma besteira!”, pensou o menino já com cara de “vou-fugir-pela-porta!”. Ele sabia qual era o estado de ânimo do pai quando ouvia seu nome mastigado daquela forma.

― O Natal é o aniversário de Jesus, Jeovando. É o dia dele!

― Jesus é o nome verdadeiro do Papai Noel? ― ainda perguntou o garoto, acreditando que com essa correção se redimia, o coitado!

― Você está de brincadeira comigo, não está, Jeovando Moisés Gomes de Carneiro Bezerra Neto? ― esbravejou o pai com olhos de fogo.

“Ai, meu Deus, eu acho que Jesus não é o Papai Noel não”, disse Jeovandinho com os dentes trancados, quase ensopando as calças.

― Je-sus-do-céu! ― exclamou o pai, soletrando as palavras, como se cortasse o ar que lhe passava entre os dentes.

― Ah, agora que o senhor falou de onde ele é, eu lembrei! ― saltou o menino. ― Eu já ouvi a mamãe falar dele quando eu faço... alguma... coisa... errada ― terminou a frase aos trombos, recordando em que situação costumava ouvir o nome desse morador do céu.

― Cale a boca e sente aí, Jeovando! ― ordenou o pai, fuzilando com o braço italiano. ― Você agora vai conhecer Jesus!!!

― Ah, pai, eu ouvi ontem na TV um homem falando para outro homem de terno, num casa enorme com uma cruz bem grande, que havia conhecido Jesus. Ele é popular mesmo! ― terminou com um sorriso de bons amigos. E levantou o polegar direito num gesto de “positivo!”. O que foi a cereja estragada no bolo, fazendo com que este desandasse de uma vez.

― Cale a boca, seu herege!!! ― trovejou, o pai, revirando os olhos vermelhos. ― Você está com o cão nos couros, seu bosta?! E não se atreva a abrir essa boca imunda outra vez, senão eu vou mandar exorcizar você, Pagão do Diabo!!! Herege do Cão!!!

― Here o quê, pai?

― Cale a boca!!! Cale a boca, eu já disse!!! Cale a booocaaaa!!! Deus, me segura, me segura que se não eu caio! Respira, respira, respira! Um, dois, três, quatro...

E respirou. Respirou devagar, compassadamente, quase um incrível Huck perdendo o tom verde, enquanto Jeovandinho, ainda assustado, tremia mais que celibatário em praia de nudismo.

― Fica sentado aí que eu vou buscar a Bíblia!!! ― disse o pai trincando um chacal entre os dentes.

― Ih, vai começar a rezar! ― sussurrou, Jeovandinho.

― O que você disse? ― perguntou o pai, voltando os olhos em fagulhas para o garoto, que se encolheu no último pedaço da poltrona.

― Nada não, pai... ― balbuciou, o garoto.

― Sei!

Dois minutos depois o pai voltou com a sua famosa Bíblia revestida em couro marrom.

― Escutai, pequeno herege!!! ― bradou, o pai, em tom solene.

“Ah não!”, pensou a mãe do garoto, na cozinha, ao ouvir o brado messiânico do marido, “Lá vem ele incorporando um pregador apocalíptico de novo! Deus me defenda!”. E ficou quieta no seu canto conversando com os legumes, que não sabiam rezar, não conheciam Jesus Cristo e que, talvez por isso, se deixavam matar e serem comidos sem reclamar.

― Sim pai! ― respondeu o garoto, assustado, mas também contendo uma gota de riso que queria escapar.

E com a mão sobre a Bíblia, o pai começou sua narrativa sem abrir o livro sagrado. Narrando de memória a vida do seu mártir:

― Num dia 25 de dezembro nasceu o salvador! Fugindo da crueldade de um imperador, nasceu numa manjedoura ao lado dos animais. Ao seu encontro vieram reis...

E rezou as partes mais importantes da biografia de Jesus, do nascimento à morte, levantando a voz de tempos em tempos, quando a emoção o inundava, o que fazia com que seu filho despertasse dos rápidos cochilos em que caía de vez em quando. Até que, passada alguma eternidade, dirigiu-se outra vez ao filho:

― E então, agora sabe quem foi, espere, quem foi não, quem é, já que Ele continua vivo em nós... E então agora sabe quem é Jesus Cristo?

“Isso parece a história do Highlander que eu vi na TV outro dia”, pensou em dizer, o garoto, “Matam, mas ele não morre. Arreeras!”, mas não disse nada. Afinal, a mão do pai ainda se encontrava no alto, como se esperasse uma benção do céu, feito os pregadores quando querem se mostrar grandiosos e eloquentes. E nessa posição, essa mão não teria nenhuma dificuldade em descer no seu pé do ouvido. Assim, o garoto preferiu dar outra resposta:

― Agora sei, papai!

― Aleluia, aleluia!!! ― disse o pai, gritando e pulando feito pregador na TV em dia de casa cheia.

― Para com isso, Ferguson Antônio! ― disse a mãe do garoto, vindo da cozinha com um pano de prato entre as mãos. (E sim, esse era o nome do pregador, digo, do pai). ― Você vai assustar a vizinhança, homem! Pelo amor de Deus!

― Valgeide ― respondeu o pregador. (E sim, mais uma vez, era o nome dela) ―, não me amola, mulher! Eu estou tentando por um pouco de juízo na cabeça desse herege. E é por culpa sua que ele é assim ― disse, apontando o indicador torto para a mulher. ― Você não educou esse menino dentro do caminho de Deus, Valgeide!

― Eu o quê, Ferguson Antônio? Eu não eduquei direito o nosso filho? É isso que você está dizendo, é, é isso, Ferguson Antônio? ― disse com uma mão na cintura e a outra sacolejando o pano de prato encardido.

― É, é isso mesmo que eu estou di-zen-do! ― respondeu balançando a cabeça a cada sílaba pronunciada da última palavra, feito lagartixa no alto do muro que só sabe dizer sim.

― Pois fique sabendo que, em primeiro lugar, meu filho não é herege, ele só não tem Deus no coração. Além disso, eu não eduquei esse diabo sozinha não, você também é culpado ― e apontou o dedo num vai e vem semelhante ao de furadeira quando não consegue entrar numa parede dura.

“Êita! Tá sobrando pra mim!”, pensou o heregezinho, quer dizer, o menino.

― Assuma as suas responsabilidades, Valgeide! Você num é besta não?! ― esbravejou o quase pastor. ― Mas que falta de absurdo é esse?! Eu trabalho o dia todo, e é você quem tem que dar a educação para esse menino! Será que eu vou ter que largar o meu emprego para colocar Deus no coração de TREVAS desse menino desnaturado?! ― gritou com a mão, mais uma vez, ao céu. ― Olha a cara dele, parece que se espanta toda vez que escuta o nome de Deus! Isso tá é possuído!!!

Era verdade, não que o menino estava possuído, mas que o menino se espantava toda vez que seu pai gritava o nome de Deus com a mão profética para o alto. É que essa imagem lembrava-lhe uma gravura que viu, certa vez, na frente de um cinema. Era a famosa imagem da morte com a foice, a capa e o capuz. Ao pai, faltavam a capa e o capuz; e no lugar da foice, a Bíblia o ceifava do mundo dos hereges. Ou tentava!

A discussão demorou mais alguns minutos na frente do menino ― que, estático, olhava para os pais, de um lado para o outro, como se faz em partidas de tênis – e na presença de Deus ― que, a essa altura, já estava sentado num dos sofás da sala, muito cansado de ouvir seu nome em vão correndo de uma boca a outra. Até que Jeovando, ansioso por saber a resposta a sua pergunta ― a primeira, aquela que começou tudo, sobre o seu presente ― resolveu antecipar um pouco as coisas:

― Papai! ― disse com voz insistente, puxando a perna da calça do homem de Deus.

― O que é menino? ― virou-se repentinamente para ele, o pai, com os olhos de Mr. Hyde.

E o garoto sapecou essa: ― Quando vocês terminarem de gritar um com o outro, o senhor vai comprar o meu presente e o desse Jesus que morreu, mas não morreu?

O pai precisou de um segundo para acreditar no que ouvia e decidir como expulsaria o demônio do corpo franzino do filho, praticamente o mesmo tempo ― uma fração de segundo a mais, talvez ― que Jeovando levou para perceber o que estava acontecendo e decidir correr, levando consigo o corpo, onde o suposto diabo habitava.

Jeovando, após a malfadada pergunta, fez um treino de corrida dos 100 metros rasos, em fuga pela casa, fugindo da resposta do seu pai, que corria no seu encalço querendo lhe responder à pergunta ― e mais uma vez com a mão aos céus, gritando “HEREGE! HEREGE! Vem aqui seu HEREGE! Você vai sofrer a ira de DEUS, Pagão dos Infernos!”.

Mas Deus não parecia estar muito interessado em julgar o garoto, tendo em vista que sua luz continuava sentada ali, no canto do sofá, olhando as nuvens, pela janela, que, livres de julgamentos e obrigações, flutuavam sorridentes.

Quanto ao menino, sobreviveu, com poucos hematomas ― frutos dos esbarrões nos móveis da casa, enquanto se transformava em velocista. E hoje é o Pastor Jeovando Moisés Gomes de Carneiro Bezerra Neto, líder de uma grande igreja com sede num vasto galpão, antigo depósito de mercadorias do porto, repleto de cadeiras de couro vermelho e dinheiro sagrado.

Pois é, Deus escreve certo por linhas tortuosas. Amem!!!


Imagem: Autoria desconhecida.

11 comentários :

  1. uma história que seria bom ser no meio da rua dramatizada

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  2. Amém. Oremos!

    Ri muito. Mas ri mesmo. Jeovando sabe das coisas. E adorei a referência ao Clã MacLeod. Eu tenho vizinhos que são crentes devotos que nem assistir televisão eles podem. Mas o marido da vizinha (que é crente) não para de olhar as mulheres que passam pela rua. Será que ele também está com o diabo no couro?

    Adorei, William.
    "Me fez rir e pensar".

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  3. Obrigado, Letícia! É bom rir, é muito bom rir, rs.

    Mas quanto ao marido da sua vizinha talvez apenas olhe as mulheres que passam enquanto analisa uma forma de torná-las pessoas melhores, mais quentes, digo, mais crentes no divino.

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  4. Obrigado, Ediney!

    Vou pensar nisso. É um boa ideia, rs! Mas se aparecer algum fundamentalista lá, não será o cão que eu terei nos couros, mas uns hematomas, rs! Sua ideia até me fez lembrar os tempo em que fiz algumas peças de comédia.

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  5. Eita, é mesmo pra rir e pra pensar: assim jeovando, digo, louvando ao Senhor, eles vão enchendo os bolsos. E o povo acreditando, o povo sem amparo
    Se no lugar de cada um desses pastores houvesse um beato, daqueles que fundavam resistência no sagrado, partia pra luta...mas aí, não sobrava um, não é? Abraços, William, gostei demais.

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  6. Obrigado, Neuzza.

    Pois é, seria uma briga feia, mas talvez engraçada.

    Um abraço!

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  7. Belo conto de natal, William. Retrato das bestas-feras que temos soltas por aí, falando em nome de deus.

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  8. Obrigado, Solha.

    Infelizmente, isso é veradade.

    Um abraço!

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  9. PARABÉNS , fELIZ ANIVERSÁRIO ! Abraços amigos Sylvia

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  10. Obrigado pela visita, José Maria.
    Vou lá no seu blog!

    Abraço!

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  11. Sylvia, minha amiga, obrigado!

    Um abraço!

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