Era noite quando a cidade dormia, como sempre, para quase todos. Somente morcegos varavam a noite e aquelas estranhas corujas brancas que cantam a iminência da morte, dizem, quando o mundo caiu. O mundo em forma de água, a água em forma de lama, a lama em forma de terror. Alguns ainda gritaram pedindo socorro — ou simplesmente o que lhes foi possível sair da garganta. Vozes interrompidas pela lama, pela noite que não acaba. Outros gritaram pelos seus que se foram, que viram ir, que viram serem levados pelas correntes, pelos escombros que os cobriram e os apagaram dos olhos. Esses continuam gritando, como se seus gritos pudessem fazer o milagre inverso ao que a natureza fez, e trouxesse todos de volta aos seus braços, com aqueles sorrisos conhecidos, com aqueles olhos familiares. Mas os gritos não trazem ninguém. A vida não pode ser rebobinada como um vídeo antigo; não realmente, a não ser em nossas mentes, lembranças que nos mantém mais perto dos que estão longe. Assim, logo, deixarão de gritar, porque a esperança é a última que morre, como diz o ditado, mas, também segundo o ditado, ela morre. É a última, não a imortal. E leva o grito dos esperançosos. Assim, sem esperança, será possível dormir, realmente, dormir outra vez, aqueles que viram os que partirem? Espero que sim. Dizem que o tempo cura tudo. Saturno sempre comeu nossos dias, quem sabe não coma também nossas lembranças ruins?! E aqueles que salvaram vidas, quase perdendo as suas vidas? A quantidade de boas pessoas ainda pode ser maior do que a de pessoas más, o problema é que o grito dos maus parece ser mais forte do que o dos bons, ou os bons costumam ficar com mais frequência calados. Nisso já acreditava Einstein. Mas os maus existem. Enquanto casas são abandonadas por seus donos que querem salvar suas vidas, visitantes gatunos, tão sujos e podres pelo pior da raça, invadem suas casas e lhes roubam, como se os roubados já não tivessem sofrido o bastante. Que espécie de energúmeno é tão monstruoso a ponto de se aproveitar da miséria de outro? Não sei! Mas agora as casas estão desertas. A cidade é fantasma, por suas ruínas, pelos seus moradores mortos que abandonaram seus corpos e agora passeiam chorosos por sobre os escombros do que um dia foram seus lares. Tentam chorar, mas não conseguem; somente corpos choram. Alguns ainda encontram seus filhos, pais, irmãos, amigos que não abandonaram seus corpos, que vagam pelos mesmos escombros a procura deles, esperançosos ainda de encontrá-los vivos. Coitados! Não sabem que eles estão ali do seu lado, acenando sem serem vistos, também desejosos de serem encontrados. Mas nem tudo na vida é perfeito, ou o perfeito é mesmo isso: aqueles que partem e se desencontram daqueles que ficam, por que, na perfeição, alguém sempre estará partindo, enquanto outro estará sempre buscando. Mas a chuva voltou. E agora vejo que não me molho. Engraçado! Pareço ser impermeável, ou será que estou tão magro que as gotas de chuva não me encontram? Parece que outra pessoa também não me encontra. Mas como se estou aqui do seu lado, tão perto, acenando, acenando feito um louco, como um daqueles bonecos ridículos de postos de gasolina? Estou aqui papai! Ei, onde vai? Estou aqui! O que há? Por que não me ver? Ei?! Mas o que é isso? Quem é esse que ele tem nos braços? Por quem chora? Por que ele é tão parecido comigo? Por que ele... por que ele... sou eu? ... Não... Não sou mais eu. Deus, não sou mais eu! Por quê? O que fizemos para merecer isso? Por que faz meu pai chorar, por que me deu aquele corpo se era para depois tomá-lo de mim e entregá-lo a meu pai em farrapos, inerte, frio como uma estátua de bronze? Por quê? Deus não tem coração! Talvez Deus não tenha Deus. Talvez Deus não exista e eu não passe de um resquício de sopro de vida ainda resistindo além do meu corpo, sobre essa lama infecta e esses escombros que não mais me ferem os pés. Somos um grupo de dominós enfileirados, de pé, que hoje teve sua hora de receber um peteleco e cair um sobre os outros, em ordem e desarranjo, para nunca mais se levantarem. Sou eu que não vi a morte chegar, e ainda assim, covarde como um lobo saqueador, ela me levou, e agora me pega pelo braço, aperta meu pulso, e diz, com a frieza dos tiranos, É hora, vamos! ... Não tenho mais corpo. Não tenho mais lama. E também não consigo mais chorar. Mas ele chora por mim. Eles choram por nós.
Imagem: William-Adolphe Bouguereau, Le jour dês morts (1959). Pintor acadêmico francês nascido em La Rochelle, em 30 de Novembro de 1825, e morto em 19 de Agosto de 1905, também em La Rochelle.
Que texto "tocador"!!!O chamo assim, pois me tocou por dentro...é possível imaginar tudo que se lê!
ResponderExcluirAdorei!!!
Bjos querido meu
Que bom que gostou, Aline. Um texto só vale se toca.
ResponderExcluirUm beijo!
William,
ResponderExcluirBelo conto, mas belo mesmo! Muito bem escrito, tocante, como disse a Aline. É uma pena que seja tudo tão possível quanto o foi.
Grande abraço.
Obrigado, Luciano. Se quem ler se sente tocado pelo texto, então ele deve ter ficado, pelo menos, aceitável. Que bom que gostou e o sentiu.
ResponderExcluirUm forte abraço!
Sempre arrasando!
ResponderExcluirTenha uma noite iluminada,repleta de paz e boas energias!
um abraço fraterno,
Mari
Obrigado, Mari. Um beijo carinhoso, minha menina!
ResponderExcluirAdorei! A passagem de narrador para personagem foi o que mais gostei.
ResponderExcluirUma identificação bonita e sens'ivel que dà a esse drama uma dimensão que os noticiàrios nunca conseguem alcançar.
Parabéns!
Um abraço,
Cybèle
Obrigado, Cybèle.
ResponderExcluirÉ sempre bom ler seus comentários, com a sensibilidade de uma leitora atenta.
Que bom que anda por aqui, por estas páginas!
Um abraço carinhoso!