15/12/2016

dezembro 15, 2016
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Nos dias de hoje quando a imagem é tudo e o sucesso é medido pelos posts felizes que alguém publica, há nas sombras, esgueirando-se pelos cantos, de olhos para o chão, alguém alheio a isso, pessoa que não traz em si o prazer e o estigma da beleza, da atitude, ou o embuste dela; há quem seja o avesso, quem seja quase não sendo, quem diante de tanta luz sobre si mesmo, onde selfie logo existo, seja Luzilene, a que só tinha luz no nome.

Luzilene é uma personagem do conto “Ganzá”, parte do livro Pássara (2016), mais recente trabalho de Vanessa Maranha, autora, dentre outros, dos livros Oitocentos e sete dias (2012) e Contagem regressiva (2014), sobre os quais já escrevi aqui. Seu nome, segundo algumas explicações, significaria mulher iluminada, o que claramente, como veremos, não é o caso aqui.

A protagonista de Vanessa Maranha me lembrou, logo na primeira frase, de Macabéa, personagem de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. O que me fez pensar: Macabéa morreu e reencarnou em Luzilene, dirão os que creem em reencarnação.

Ambas são mulheres fantasmas que vagam pelos cantos. A personagem de Clarice Lispector era tão reles que nem sequer poderia vender seu corpo, como muitas moças fazem para sobreviver, porque ela “mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém” (p. 13) como diz seu narrador. Era alguém que ia vivendo à toa (p. 15), “como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si” (p. 18). Tinha o mundo fora de si, ela era fora de si (p. 24), e Luzilene também.

Além disso, o narrador de Luzilene parece seguir a mesma cartilha do de Macabéa que diz: “[...] eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que desejo frio” (p. 13). Tão cruel quanto o da moça do conto “Ganzá”, também descrita sem pena, exposta sem piedade, com uma riqueza de imagens que nos põe a moça a claudicar, curvada e submissa em nossa frente. 

Luzilene era como um ser que vive quase não vivendo, proto-humano existindo como se não tomasse consciência de si mesmo; alguém que não faz sombra e quem a olha não a vê. Na verdade, quem a olha? E é sobre sua ausência, seu avesso e a forma como é descrita para o leitor que vou me deter neste ensaio. Vamos a ela.

Já na primeira frase do conto a descrição profunda mostra todo o ser raso que virá pela frente na figura dessa moça de apenas 22 anos: “Luzilene era parda como uma beira de rio revolvida” (p. 71). Pardo é uma cor pouco definida que, no sentido figurado, pode se empregar a algo que tem pouca intensidade ou visibilidade. Já quanto à “beira de rio revolvida”, isso diz muito da sua imagem, como o que restou de um reboliço, de uma mistura, algo sem nitidez.

Mais à frente o narrador a descreve como “a mulher bege” (p. 72) que traz “No corpo o zinabre” (p. 72), na percepção de Raul, fotógrafo, seu vizinho. Zinabre, além de poder produzir o cheiro que Raul sentia de longe, na verdade, diz respeito à cor, uma camada de cor esverdeada que se forma em superfícies de cobre ou de latão; um esverdeado que não expressa saúde, mas sim decrepitude, ausência de brilho como na vizinha do fotógrafo.

Mas Luzilene era mais, ou talvez seja melhor dizer menos. Assim como a primeira impressão que dela tivemos acima, outras indefinições se encontravam nela, dentre as quais, “Sua boca, quase um risco descarnado, não dizia, semitonava, balbuciava para dentro” (p. 71). Um risco, quase uma não existência de uma boca na qual o “descarnar” potencializa a imagem, uma vez que “descarnar” significa sem carne, sem polpa; portanto, uma boca quase traço que sequer falava. Sua voz não produzia som completo, mas meio-tom, semitom, um intervalo que é a metade de um tom.

Quanto ao seu comportamento e aparência, estes eram tão anacrônicas que dela se diz “mulher ancestral, anterior à epiderme” (p. 71), ou seja, seria difícil até mesmo coloca-la na categoria dos animais que conhecemos, pois seus ares eram pré-históricos e tão ausentes dos dias de hoje que “quem olhava não via” (p. 71). Era ausente.

Na verdade, era pior, “tinha um ermo em sim, era plana e rasa em sua cara de feições achatadas” (p. 71). Nesse ponto, a distancia de si mesma, uma ausência, um vazio, vácuo como se não fosse constituída de substância, feito uma casca oca e nada mais a existir. Vaga.

Quanto ao plano e raso da cara achatada, isso já dimensiona a falta de profundidade da persona, o intelectual baixo, a atração irrisória ou nula, bem como a falta de nuances na face, de desenho, de irregularidades nas feições que lhe atribuiriam expressão, identidade, construção complexa. Mas não, era sem matiz, sem curvas; diferente da vergonha: “tinha vergonha [...]. Aquela vergonha curva” (p. 71) de quem olha o chão, submisso quando fala com o patrão, com o chapéu entre as mãos e a cabeça curvada. Vergonha curva é o cumulo da criatura submissa, servil, envergado sobre si mesmo, caracol.

A expressão da servidão em Luzilene também está na descrição de seu trabalho de faxina quando “se envergava quase primata no chão a lustrá-lo [...]. Ali era ela e o chão, coisa séria, esfregando-o firme como quem castiga” (p. 71). Essa descrição tanto pode nos dar a ideia de que ela vivia de cara para o chão, servil, sem levantar os olhos ao outro quanto para nos indicar a sua tarefa de limpar o chão como se este fosse parte sua, curvada sobre ele como sobre a vergonha.

Alguém assim parece impossível, por isso a pergunta do narrador: “Teria ela nascido mesmo? Ou fora expulsa das entranhas secas, famintas que de tão miscigenadas não conjurariam sequer em origem, identidade?” (p. 72). Isso por que em tão baixo grau de humanidade o nascimento é suspeita de sobrevivência e nada mais. A criança nasce para escapar da falta de alimento nas entranhas ocas de sua genitora, tão sem recursos quanto Luzilene hoje. Além disso, sua origem é suspeita de tantos cruzamentos, de tantas naturezas que, na mistura de culturas e cores, não lhe sobra identidade, registro de algo que lhe defina. Luzilene é parte de muitos e ninguém.

Porém essa moça tem desejo de felicidade, desejo de felicidade amorosa. Desejava seu vizinho Raul, mas não acreditava tê-lo. E quem diria, julgava-o “tão estranho, tadinho” (p. 72). Isso vindo dela, a do avesso do mundo. Mas enfim, diante disso não esperava muito, “Um gabiru do lixão já servia para casar-se com ela” (p. 73).

Na descrição tradicional, gabiru é o indivíduo velhaco, patife, de gestos maledicentes, desses que vivem a dar golpes; e era um desses que ela já aceitaria para ser seu, ou melhor, para ela ser dele, serviçal, submissa como em tudo. Alguém que se aproveitaria de sua sujeição. Ainda assim, se lhe apresentaria como um sonho (pesadelo medonho para a maioria das mulheres, senão para todas). Com esse homem ela se deitaria “toda cor de reboco areado, mansa, sem dizer, à espera, à mercê, antiga e irritante como uma macaca domesticada sem raciocínios, na base da subsistência” (p. 73, grifo meu), mais uma vez, a imagem ancestral e pré-histórica do ser, um “reboco areado”.

Além disso, na admissão de ser feliz com tão desprezível homem, está a submissão de alguém que aceita, talvez por acreditar ser um conforto, a sorte de ter alguém, mesmo que gabiru, feito bicho que se contenta com o dono que lhe bate, mas lhe alimenta, uma “macaca domesticada” e sem capacidade de pensar, mecânica, treinada a ser assim, servil, sobrevivente e nada mais.

Por isso, era “sem expressão, se sorria, se chorava, dava no mesmo, tudo monocórdio nela” (p. 73). O substantivo monocórdio, instrumento grego que possuía apenas uma corda, dá o tom da simplicidade na oração. Que variação musical isso poderia produzir? Que variação de expressão, que caras e bocas poderia ter Luzilene com uma única corda a vibrar em si?

E como tudo nela era ancestral, a fome também. Na casa da patroa se alimentava nas fugas. Na descrição da maneira como se “nutria”, mais uma imagem do bicho oco de fome a aproveitar esconderijos para saciar o pouco que puder, o bastante para sua subsistência. Assim, alimentava-se de uns “nacos de doces subtraídos da despensa da patroa, uma lata de leite condensado bebida toda de uma vez, às talagadas, Luzilene agachada e trancafiada em segredo no banheiro, olhos arregalados, a fome ancestral, os olhos vazios” (p. 73, grifo meu).

Nas partes em negrito o peso da imagem de um mundo raso, sub-humano, abaixo de qualquer concepção de decência e integridade. Luzilene come como quem furta, sequer se tranca no banheiro, a palavra é “trancafiada” no banheiro, o que vai além de trancar, é se encarcerar, denotando o cúmulo da necessidade de se esconder, de se tornar invisível para se alimentar, como se temesse o simples esconderijo que poderia lhe revelar o furto da comida que ela engole “às talagadas”, substantivo normalmente usado para descrever a forma como alguém, sedento, bebe de forma bruta, de um só gole, o que calha perfeitamente com as “ceias” de Luzilene, ali escondida, bebendo tudo com pressa, feito bicho do mato, homem das cavernas (com fome ancestral) que aproveita a refeição furtiva com medo de perde-la.

Além disso, essa refeição se dá no lugar menos indicado para tal, o banheiro. Onde outros despejam seus detritos após comerem, é onde ela se alimenta, mesmo assim escondida, bicho esfomeado de olhos que oferecem duas características trágicas: arregalados e vazios. Pois em nada pensa nesse momento, come por instinto, atendendo a uma necessidade da máquina defeituosa que lhe coube, o corpo curvado.

E se, como foi dito antes, era monocórdia, não era de se estranhar que também fosse ruim de canto. Na procissão em que participava, Raul que a fotografava, constatava que “a moça tinha a voz mais estridente e surpreendentemente alta no entoo das ladainhas coletivas” (p. 73). Desafinava como só ela, mas era nesse momento em que brilhava, porque se soltava, sem medo, entregue ao êxtase, à curta existência entre os devotos. Como não percebê-la com essa voz?! Na procissão ela se emocionava, fazia parte do povo que cantava, onde todos prosternavam, onde todos eram submissos ao ser supremo, não só ela.

Raul, um tempo depois, numa exposição em Paris, exibiu fotos de Luzilene nesse momento. Ela “imortalizada, emoldurada” (p. 74), objeto como sempre pareceu ser, mas agora observado, mesmo que como algo exotique, mas visto, ela “a mulher de fogo pequeno, sem faísca, quase apagando” (p. 74), enfim, “Ela que nem na morte gritou” (p. 74), declarou amor ao seu assassino, agora ali, admirada, para o bem ou para o mal, o bicho exótico que sempre foi. Quando ela teria tanta atenção se não pelo intermédio da morte, transformada em arte?! Agora Luzilene era “Natureza morta” a poder ser contemplada.

Sobre esse tipo de mulher e personagem, Elódia Xavier, estudiosa da literatura brasileira e do feminino nela, em seu livro Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino (2007), quando se refere à personagem de Clarice Lispector, Macabéa, declara-a como representação do que ela chama de “corpo disciplinado”, o que seria uma personagem subordinada às regras, à disciplina, não percebendo estranheza na sua relação de subordinação e dominação; inconsciente, previsível na sua repetição de atitudes e discursos já pré-estabelecidos na sua formação.

Essas características se assemelham às de Luzilene, oriunda de família já reles, expurgada, e não nascida, filha da miséria, portanto, desde o nascimento, já predeterminada a essa vida de subalterna, reforçada por instituições como a Igreja, onde desfila em coro submissa a suas regras e crenças. Enfim, mulheres disciplinadas pela origem e pelo mundo que as concebeu e educou.

Mas toda essa percepção sobre a figura de Luzilene só pôde ser apreendida graças à qualidade das imagens dispostas no decorrer do texto que perfeitamente nos apresenta a figura que se propõe apresentar: reles, submissa, pequena, quase sumindo. Foi essa riqueza na forma como nos é apresentada a moça que me chamou atenção no conto, não foi a narrativa em si, sua ação – que não há, assim como não há diálogos ou movimentos. O conto é quase uma crônica descritiva e detalhada de alguém que não vive, vegeta.

Enfim, a riqueza está na maneira como se descreve alguém, quase ninguém, a força na escolha das palavras para dar ao leitor a verossimilhança da ideia de um ser, de uma criatura. E Vanessa Maranha o consegue. Temos a imagem do desalento, da pessoa que passa pelo mundo como poeira que se arrasta sob nossos pés sem percebermos, “parda como uma beira de rio revolvida”.

Diante da imagem curvada e inócua de Luzilene que nos foi exposta aqui, resta-nos o olhar transversal, seja por pena, ou dó, seja por arrogância daqueles que se verão em degrau superior ao da moça.

Essa era Luzilene, tão simples quanto um ganzá, instrumento simplório, chocalho feito de um cilindro de metal contendo pedras ou sementes, mas que também pode ser um tambor feito a partir de um tronco escavado, ou ainda, um humilde reco-reco. Seja qual for o ganzá do conto, não passava de um instrumento selvagem e ancestral como Luzilene, a que só tinha luz no nome.




REFERÊNCIAS


LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

MARANHA, Vanessa. Pássara. São Paulo: Patuá, 2016.

XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.

4 comentários :

  1. Belo livro, belo texto. Parabéns, caro Lial. Abraços.

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    1. Obrigado, Pedro!

      É sempre bom receber suas visitas, leituras e comentários.

      Grande abraço!

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  2. Que lindo e delicado ensaio, Willian. Gosto muito dos seus textos críticos, envolvendo sempre muito estudo, perspicácia e poesia (sua veia poética está sempre presente) quero vê-los publicados em um livro. Quero também ler o livro, que foi publicado pela Patuá, minha casa.

    Beijo grande,

    Vera Helena

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    1. Obrigado, Vera Helena! Sempre gentil.
      Eu espero publicar meus ensaios em livro futuramente. Logo depois que publicar os dois livros de poemas, o de contos e o romance que estão na gaveta, rs!

      Obrigado também pela leitura!

      Um beijo carinhoso.

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