03/09/2015

setembro 03, 2015
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Quando eu era garoto, ainda no segundo grau, como se chamava na época, um professor de Literatura, sabendo que eu era poeta e que escrevia há muito tempo, trouxe-me um livro que, disse-me ele, "Retrata muito uma realidade de quem escreve no Brasil". O livro era O feijão e o sonho (1938), de Orígenes Lessa. Li o livro e sofri. Como escrevia há muitos anos, desde os oito de idade, já havia sentido que o caminho era doloroso, que a satisfação da simples leitura de uma obra minha poderia nunca chegar.

A luta daquele artista por continuar no caminho da poesia era desanimadora. E tudo ao meu redor dizia que Lessa descrevera a pura e crua verdade. Mas eu insisti, continuei a escrever: poemas, contos, crônicas, ensaios, romance – naquela época do colégio, o mesmo professor me pediu para escrever uma peça teatral, que escrevi e foi encenada e filmada (Recentemente, mexendo em meus papéis antigos, encontrei esse roteiro. Não sei o que senti ao relê-lo).

Mas enfim, continuei a escrever, apesar do livro de Lessa. Comprei-o posteriormente e o reli, e continuei no caminho, insisti contra tudo e contra todos – talvez contra mim mesmo –, acreditei quando muitos já pareciam me dizer sim, quando muitos já me liam. Mas com o tempo vi que o caminho ainda era o do não, que os elogios não passavam de palavras, que a verdade ainda era a mesma do O feijão e o sonho e que eu havia me tornado uma espécie de Campos Lara, o protagonista sem feijão.

Então olhei para os lados e não vi nada. Primeiro não vi pessoas, depois não vi paredes, não vi teto, não vi muros nem luzes, nem postes para as luzes que ali poderiam existir. Mas ainda via o chão para que eu tivesse onde cair; um chão duro, de cor indefinível, mas um chão.

Porém hoje, sinto a cor desse chão, seja ela qual for, se apagar. Uma transparência parece escorrer em busca dos meus pés, a começar pelos cantos, seguindo lentamente para o centro, onde me encontro, curvado, mas de pé. Imagino que logo tudo estará transparente e que meus pés parecerão flutuar, não de leveza, mas de ausência, perdidos como minhas mãos, inviáveis como minha cabeça.

Ouvindo o barulho líquido da transparência a se aproximar do centro, sinto que não falta muito para que o aparente flutuar torne-se real e nem mesmo ele, o chão, esteja lá perante minha queda. Se assim ocorrer, o ciclo se fechará como um avesso de sonho, um túnel onde se caminha para a escuridão, não para a luz – Não há luz no fim do túnel, dirão os que nele chegarem. E muitos lá continuarão a chegar.

Hoje, sobre o chão que se liquefaz e tomado de ausências, sei mais do que antes o que o meu professor quis dizer quando me emprestou seu livro.




Imagem: Capa atual do livro pela editora Ática.


10 comentários :

  1. No filme Meia-Noite em Paris, Hemingway diz ao protagonista, que se pretende romancista: O mais importante é ser honesto. Você foi honesto e marcou um tento forte.

    W. J. Solha

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  2. No entanto, amigo Lial, o sonho literário é algo que ninguém nos pode tirar (ou retirar). Está conosco em cada palavra escrita. Em cada verso e reverso. Em cada ponto. Não nos perdemos, nem perdemos a realidade: temos o texto e isso - por mais que nos apavore, sempre - é o que temos a distribuir. Um leitor, um eleitor. Bastante. Parabéns pelo texto. Abraços.

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  3. Li esse livro, reli e continuo a achá-lo fundamental. É simples, mas é crucial: toca nisso que é ser escritor no país com um realismo que não dá para ser contestado.
    Ironicamente, a gente percebe que chegar a ser notoriedade na literatura brasileira não poupa ninguém de continuar sendo Campos Lara. Viver da arte literária é simplesmente impossível, com a realidade que está aí.

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  4. Ainda assim, você continuará de pé...bjs

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  5. Caro garoto, hoje escritor e adorável, William Leal, será este o retrato do Brasil que nunca mudou? Temos outros autores que diriam o contrário? Como é o mundo da escrita lá fora, em outros países? Promissor? Ah, adorável garoto dos tempos que não voltam mais... a culpa não está em você, mas no modo como o nosso país é conduzido. Esperemos novos rumos, novas ideias; vai demorar. Aguenta firme porque você é dos melhores!

    Abraços querido escritor! Sonia Salim

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  6. Pura verdade, Chico! Com ou sem sucesso, não se vive de Literatura no Brasil. Aqui, falar em escritor profissional é um sacrilégio, uma ofensa a uma atividade tão sagrada. Se pode ganhar dinheiro com música, com teatro, novela, mas com literatura...

    Obrigado pelo depoimento, meu amigo!

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  7. Pedro, é verdade. O texto está sempre lá. Com ou sem leitores, acabamos escrevendo, nem que seja por nós mesmos, para tirar isso de dentro, para falar.

    Obrigado pela visita, leitura e comentário!

    Abraço!

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  8. Mari, é o que se tenta, é o que se tenta :-)

    Obrigado pela visita!

    Um beijo carinhoso!

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  9. Oi, Sonia.

    Obrigado pela leitura, comentário e gentil elogio. Aqui é mesmo difícil. Lá fora se vive de literatura, de escrever. Aqui...

    Por enquanto o Brasil não vai mudar, mas quem sabe um dia.

    Um abraço carinhoso!

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